Pedidos de brinquedos costumam ocupar as cartas enviadas ao Papai Noel nesta época do ano. Mas, em centenas de mensagens entregues à tradicional campanha de Natal dos Correios, o que aparece antes dos desejos infantis é algo mais urgente: medo, insegurança e marcas deixadas pela violência cotidiana.
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Pedidos de Natal revelam medo e insegurança desde cedo
Em diferentes regiões do país, crianças pequenas escreveram — ou ditaram — pedidos que fogem do imaginário comum do Natal. Em vez de jogos ou bonecas, surgem solicitações por objetos que simbolizam proteção, companhia ou ajuda para familiares atingidos por crimes armados.
Na Região Metropolitana de Salvador, uma menina de 7 anos surpreendeu ao colocar seu próprio presente em segundo plano. Antes de falar de uma boneca, ela pediu ao Papai Noel uma cadeira de rodas elétrica para o irmão de 12 anos, que ficou paraplégico após ser atingido por uma bala perdida ainda bebê. A família vive hoje em Lauro de Freitas, município que, mesmo fora do ranking nacional recente, segue entre os mais violentos da Bahia, segundo dados do Atlas da Violência 2024.
O episódio que mudou a vida do menino aconteceu durante uma execução na rua onde ele estava com o pai. Desde então, a rotina familiar é marcada por adaptações, limitações físicas e tentativas de manter a infância viva apesar do trauma. O equipamento pedido na carta representa mais autonomia e qualidade de vida — algo fora do alcance financeiro da família.
Pedidos por “proteção” também aparecem em cartas escritas por crianças do Rio de Janeiro. Em uma favela da capital, dois alunos de 6 anos, ainda em processo de alfabetização, pediram à professora que registrasse seus desejos. Um deles solicitou um dinossauro para não se sentir sozinho quando há tiroteios; o outro pediu um urso para dormir no chão com ele durante os disparos. Ambos associam o brinquedo à ideia de segurança.
Violência armada deixa marcas profundas no desenvolvimento infantil
Especialistas apontam que esse tipo de pedido revela como a violência atravessa o desenvolvimento emocional desde cedo. Para educadores e pesquisadores da área social, crescer em territórios marcados por confrontos armados encurta a infância e antecipa preocupações que não deveriam fazer parte do universo infantil.
A estudante de pedagogia Gabriela Correia, que perdeu o pai em uma ação policial quando tinha apenas um ano, diz que datas comemorativas sempre evidenciaram a ausência. Hoje adulta, ela afirma que o impacto da violência não se limita ao momento do crime, mas acompanha toda a trajetória escolar, afetiva e social.
Organizações que atuam na defesa dos direitos da criança alertam que a exposição frequente a operações policiais, tiroteios e interrupções das aulas compromete não só a segurança física, mas também a saúde mental e o direito à educação. Para elas, proteger a infância passa, necessariamente, por repensar políticas de segurança pública em áreas densamente habitadas.
Cartas também expressam esperança por um futuro mais seguro
Ainda assim, algumas cartas carregam esperança. Em Rio Claro (SP), um estudante de 10 anos pediu um tênis para praticar atletismo e incluiu um desejo extra, “não para ele, mas para o mundo”: paz. Um pedido simples, mas simbólico, em meio a um cenário nacional em que a segurança pública segue como a principal preocupação da população, segundo pesquisa Quaest divulgada em novembro, na qual seis em cada dez brasileiros afirmaram não se sentir seguros em sua própria cidade.
As cartas, que podem ser adotadas por voluntários na campanha dos Correios, acabam revelando mais do que desejos de Natal. Elas funcionam como retratos sinceros de uma infância que aprende cedo demais a conviver com o medo — e que, ainda assim, insiste em sonhar.