A decisão da Prefeitura de São José dos Campos de retirar das salas de leitura da rede municipal um livro infanto-juvenil abriu o debate sobre censura a obras literárias.
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O livro “Meninas Sonhadoras, Mulheres Cientistas”, da juíza Flávia Martins de Carvalho, foi recolhido das escolas municipais nesta quarta-feira (12), após um pedido do vereador Thomaz Henrique (PL), que apontou suposta “apologia ao aborto” na obra.
A decisão provocou indignação e críticas na comunidade escolar e entre moradores de São José, que questionaram a medida em postagens nas redes sociais.
Classificado como infanto-juvenil, o livro “Meninas Sonhadoras, Mulheres Cientistas” conta a história de 20 pesquisadoras que alcançaram posições de destaque. Assim como a autora, a maioria das mulheres mencionadas são negras e brasileiras, entre elas a vereadora Marielle Franco, assassinada no Rio de Janeiro em março de 2018, e a antropóloga Débora Diniz.
De acordo com a Editora Mostarda, o livro usa uma linguagem de cordel para escrever sobre a vida e trabalho das mulheres. “Por meio de poesias sensíveis e profundas, a autora homenageia, celebra e canta a vida de 20 mulheres com histórias inspiradoras”.
Mestre em Direito e doutoranda em Filosofia e Teoria Geral do Direito pela USP (Universidade de São Paulo), a autora Flávia Martins é juíza de direito no Tribunal de Justiça de São Paulo e juíza auxiliar no STF (Supremo Tribunal Federal), considerada a única magistrada negra na Suprema Corte do país.
Recentemente, o governo do Rio Grande do Sul suspendeu decisão de tirar de escolas do estado o livro “O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório, romance vencedor do Prêmio Jabuti de 2021.
O banimento começou depois de uma diretora de escola de Santa Cruz do Sul (RS) publicar vídeo nas redes sociais atacando o conteúdo da obra, por usar o que chamou de “vocabulário de baixo nível”.
A medida repercutiu e foi criticada nacionalmente e levou o governo a suspender a retirada do livro de escolas estaduais.
CONSERVADORES.
Após trocar o partido Novo pelo PL, legenda que abriga o ex-presidente Jair Bolsonaro, Thomaz Henrique envolveu-se em polêmicas sobre pautas caras aos bolsonaristas, como a negativa de que houve ditadura militar no país e agora o aborto.
Em ofício encaminhado à Prefeitura de São José, Thomaz criticou o livro de Flávia Martins e afirmou que a obra faz “apologia ao aborto”.
“O livro traz, além da figura da ex-vereadora Marielle Franco, em clara doutrinação ideológica, também a apologia ao aborto, ao retratar a sra. Débora Diniz, notadamente uma das maiores defensoras da legalização e descriminalização do aborto no Brasil”, diz trecho do ofício.
Thomaz ainda disse que, no poema sobre Débora Diniz, “a defesa do aborto é tratada como direitos reprodutivos” que, segundo ele, é um “eufemismo utilizado pela esquerda para falar em assassinato de bebês”.
O vereador concluiu que o conteúdo do livro é “impróprio para crianças na rede pública municipal de ensino” e exige que seja “imediatamente retirado das escolas”. Ele ainda quer saber “quem são os responsáveis pela seleção do conteúdo de livros distribuídos na rede pública”.
LIBERDADE.
Em artigo para OVALE, o professor e escritor Fabrício Correia, presidente da Academia Joseense de Letras, disse que o recolhimento dos livros é “profundamente preocupante”.
“Esta ação é um ataque direto à liberdade de expressão e ao direito à educação, uma tentativa deplorável de silenciar vozes essenciais para a construção de uma sociedade mais justa e inclusiva”, afirmou.
“A atitude do vereador Thomaz Henrique, ao questionar a presença do livro nas escolas e associar sua retirada a figuras públicas como Débora Diniz, revela uma compreensão superficial e preconceituosa sobre o papel da educação”, acrescentou Correia.
“A escola é um espaço de aprendizagem e debate, onde diferentes pontos de vista devem ser apresentados e discutidos. Impedir o acesso a um livro que promove a igualdade e a representatividade é uma forma de autoritarismo que não condiz com os valores democráticos que nossa sociedade preza e que o governo Anderson Farias representa.”
Em nota oficial, a Academia Joseense de Letras classificou como “censura” a decisão da Prefeitura de São José. “A Academia Joseense de Letras expressa sua mais profunda consternação e veemente reprovação diante da recente decisão de censurar obras literárias nas instituições de ensino municipais”, diz a nota da entidade.
“Tal ação representa uma afronta direta aos princípios fundamentais de liberdade de expressão e ao direito à educação, pilares imprescindíveis para o desenvolvimento de uma sociedade justa e democrática.”
Professora de História em escola municipal de São José, Jéssica Marques chamou o episódio de “assustador”.
“Nunca vi uma situação como essa, sem justificativa e sem diálogo. É um livro que, por meio de poesias sensíveis e profundas, homenageia, celebra e canta a vida de mulheres com histórias inspiradoras, de sucesso e de superação. Por isso, na escolha há Marielle Franco, cuja memória mantemos viva em sua luta pelos mais necessitados. É um absurdo essa censura que ocorre nas escolas de nossa cidade”, afirmou.
“Parece que estamos voltando à idade das trevas. É um ato de reacionarismo, um retrocesso, que deve ter repercussões judiciais”, disse um membro do judiciário de São José.
OUTRO LADO.
Procurada pela reportagem, a Editora Mostarda informou que iria se reunir nesta quinta-feira (13) para “definir os próximos passos”. OVALE aguarda o posicionamento da editora e da autora. O espaço segue aberto.
Também procurada, a antropóloga Débora Diniz disse que seguirá as recomendações da editora e da autora do livro.