ARTIGO

Incomodando Maria

Por Cecílio Elias Netto |
| Tempo de leitura: 3 min

Ainda na adolescência e cursando a Faculdade de Direito (PUC-Campinas), foi-lhe dado a conhecer, para estudos, um documento que lhe despertaria outros horizontes. Tratou-se da encíclica “Rerum Novarum”, do Papa Leão XIII. Ainda que escrita em 1891, a carta ainda servia de referência à realidade mundial daquele final dos 1950. O jovenzinho descobria, então, a importância dos documentos pontifícios para as questões humanas.

Ao longo da sua jornada pessoal, ficou atento a outros e diversos pronunciamentos “urbi et orbi” do Vaticano. E todos com forte poder transformador: “Mater et Magistra”, “Humanae Vitae”, “Populorum Progressio”, “Lumen Gentium”, “Gaudium et Spes”, a notável “Laudato Si” do Papa Francisco. E tantos outros documentos que refletem os mais de dois milênios de experiência da Igreja com a humanidade.

Não há negar, todavia, que a voz do Vaticano incomode. Pois, mesmo o homem dessa pós-modernidade considerando-se senhor de todas as liberdades, somos condicionados. O “homo faber” convive, dentro de si mesmo, com o “homo religiosus”. Até em suas superstições, há, nessa busca, algo de religioso. O mistério humano chega ao infinito.

O Papa Leão XIV parece manter a tradição missionária de também incomodar. Agora, com o seu recente pronunciamento sobre Maria, a Nossa Senhora. Ao escrevinhador caipira, pelo menos, incomodou. O Sumo Pontífice fez questão de colocar um ponto final numa questão que parece inquietar mais teólogos do que o simples devoto: a referência a Maria como “corredentora” da humanidade. Mas, quem, do povo, com isso se preocupou ao longo dos séculos? O que, à multidão de fiéis, significa a “corredenção”? Há um sem número de humanos que sequer entendem a razão de a tolice de Eva e Adão ter-se tornado milenarmente hereditária.

Neste “mundinho de Deus”, o escriba sabe que melhor faria não se meter em palavra final do Papa: “Roma locuta, causa finita”. Mas – convenhamos! – Sua Santidade precisaria, em hora tão amarga, incomodar Nossa Senhora e seus devotos? Quantos, na imensidão deles, preocupam-se em saber se Ela é redentora, corredentora; se deusa, se virgem. Maria é mãe! A humanidade sofredora sente que os homens ditos santos não conseguiram consertar horrores do mundo.

Pai, Filho, Irmão, Espírito estão no comando há dois milênios. O mundo precisa de Mãe. Que o compreenda, que o suporte, que o aceite com todos os erros e defeitos; sem penitências, sem infernos ou purgatórios. Esse apelo, essa necessidade, até mesmo tal esperança revelam-se intrínsecas à aventura humana com demonstrações artísticas comprovadas de, pelo menos, até 30.000 anos, ainda na Idade da Pedra. Encontradas em lugares então residências da Espanha e França, são pequenas estatuetas femininas a que se deu o nome de “Vênus”.

Ora, aqueles que consideramos “primitivos” cultuavam, primacialmente, o feminino. Com eles, estiveram Deméter, Perséfone, Artêmis, a ninfa Circe, a Mãe Terra – essa que faz nascer, que alimenta e, também, para onde voltamos. O próprio destaque ao corpo da mulher – tornado, ao depois, fonte de desejo – demonstra o entendimento sobre a magia feminina. Quadris, seios expoentes revelavam o milagre do nascimento e da alimentação. Os primitivos sabiam.

O mundo quer mãe. O masculino – pais, santos, heróis, deuses, profetas, guerreiros – não deram conta da ansiedade, da angústia humanas. Povos e nações vivem a esperança em Maria. Sendo Mãe, Ela acompanha os filhos até o Calvário. Deixem-na, pois, com os simples de coração. Eles sabem entender o cântico de Goethe: “...o eterno feminino nos enleva”.

Cecílio Elias Netto é jornalista e escritor.

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