ARTIGO

A paz e o tango de Satanás

Por Kazuo S. Koremitsu |
| Tempo de leitura: 3 min

Para os círculos acadêmicos, o mês de outubro é sempre uma festa, aguardada com grande expectativa. Motivo: data em que são comunicados os prêmios Nobel de medicina, física, química e economia. Mas para nós, meros mortais, o que importa mesmo e infla as casas de apostas do mundo inteiro são ou outros dois prêmios do Nobel, muito mais polêmicos e midiáticos: o de Literatura e o da Paz.

É quase impossível polemizar sobre as escolhas dos prêmios de medicina, física, química ou economia, seja porque o tema motivador da premiação é por demais complexo, seja porque nunca ouvimos falar o nome dos premiados, muito menos dos preteridos. Mas o mundo da literatura é para lá de mais apaixonante - e cheio de vaidades, ufanismos nacionalistas e um suave toque de ideologia. O Brasil, é claro, nunca ganhou nenhum prêmio.

Na literatura brasileira não há lugar para complexo de viralatismo, temos grandes escritores e uma literatura de alto nível, mas toda ela escrita numa língua que ninguém fala, ninguém lê. Portugal entra nesse mesmo balaio de gato (ou de língua). Posso aqui descrever uma lista de escritores brasileiros que mereciam o prêmio Nobel e aposto que muitos leitores vão endossar e até sugerir outros nomes. Mas deixa esse assunto para lá. Quem sabe em 2040 recebamos alguma premiação. Não podemos jamais perder a esperança.

No campo da paz temos alguns poucos merecedores, mas que nunca foram aquinhoados. Mas vamos também deixar de lado esses, até porque todos já morreram.

A meu ver, o que melhor ilustra a paz não é uma pomba branca voando no céu, mas algo muito mais concreto. Contraditoriamente, o maior símbolo da paz é são os monumentos devotados à lembrança da guerra. E, dentre muitos, eu escolheria a estrutura derretida do prédio de Hiroshima e ao seu lado, o monumento da paz, com vários cordões de mil tsurus, feitos de origami, simbolizando a felicidade.

A paz é um conceito completamente vazio sem a guerra. Ou seja, é preciso que haja  guerra para que possamos conceituar paz. O único prêmio Nobel dado pelo parlamento norueguês, e não pela Academia Sueca, é o da Paz. Talvez Alfred Nobel, em testamento, quis livrar a Academia Sueca do peso político dessa escolha. E, de fato, é um fardo. É o mais ideológico de todos os prêmios e politicamente sensível.

Vejamos o Nobel da Paz desse ano, atribuído à Maria Corina Machado, venezuelana opositora do regime ditatorial de seu país. O parlamento norueguês deu um recado ao mundo e, sem querer (ou querendo mesmo) um forte impulso para uma guerra nas costas do Caribe. Foi como se dissesse: «vai Trump, pode bombardear a Venezuela e derrubar o ditador em nome da paz». Quando as guerras atuais se concentram no Oriente Médio e na fronteira da Rússia com a Europa, a Noruega, com muita sabedoria, apontou seu dedo para a América do Sul, lá do outro lado do seu mundo.

O prêmio dado à Maria Corina, estranha e perfeitamente, coincidiu com o tema da obra prima do Nobel de Literatura deste ano, o húngaro László Krasznahorkai. Em seu único livro traduzido para o português, Sátaántangó, de 1985, seus doze capítulos imitam os movimentos de um tango (seis passos para frente, seis para trás), refletindo a natureza cíclica e repetitiva da desesperança. É uma obra sombria e hipnótica sobre o fim de um mundo, a falência da esperança e a facilidade com que a humanidade é corrompida e manipulada em seu desespero. Muito apropriada para nossos tempos.

Kazuo S. Koremitsu é economista com doutorado em Direito.

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