ARTIGO

Um “duelo” com cinta

Por Cecílio Elias Netto |
| Tempo de leitura: 3 min

E chegou o tempo de mergulhar em memórias e recordações buscando vir a contá-las como contribuição. Eis, então, que o matusalêmico escrevinhador se espanta com fatos, coisas que ele próprio – relembrando –   custa a acreditar. Não teriam sido sonho, pesadelo? Invenção, talvez? Se ocorreram, como foi possível àquilo sobreviver?

Mas aconteceram. Foram anos dramáticos que, amargamente, deixaram herdeiros tentando, ainda, revivê-los. E a ameaça se avulta diante do aparente esquecimento da advertência que nos alcança desde o século XVIII: “O preço da liberdade é a eterna vigilância.” Estaríamos, atualmente, sendo vigilantes? Tem-se noção do que seja perder a liberdade? O ensinamento cristão – “Vigiai e orai” – não nos serve apenas para questões de fé, de costumes. Trata-se de sabedoria também para a vida prática. E, na condição humana, o vigiar está entre as necessidades primordiais.

Insensatos há – e oportunistas – que ainda propõem o retorno do militarismo a este país. Obviamente, trata-se da herança que nos ficou desde os primórdios, da monarquia à república. Talvez, haja, realmente, a nostalgia das figuras de um rei, de príncipes, de condes. Costumamos criá-los: Rei Pelé, Rainha Xuxa, Rei Roberto Carlos, reis do café, da soja, do açúcar, Princesa do Oeste...

Há, pois, quem deseje o retorno de muito disso. E parece, realmente, ser verdadeiro esse eterno retorno da vida por si mesma. Ora, desde o século 18, a genialidade de Lavoisier nos ensinara: “Nada se perde, nada se cria, tudo se transforma.” Tudo o que é vivo. E, portanto, o pretensioso ser humano também. E vivemos – sim e ainda – o entendimento marxista da “luta de classes”. Cada vez mais ampla, porém, embora com outros nomes: competição, concorrência, meritocracia, por aí vai. Na realidade, confirmando outra antiga constatação, a de Darwin: “lei do mais forte”. A seleção natural, o “struggle for life”, a lei da sobrevivência que, por ser humana, ainda implica todos os apetites. Ou não?

A civilização, humanismos, também credos religiosos buscam estabelecer equabilidades. Muito já foi alcançado, mas ainda distante do que permanece utópico. Democracias fragilizam-se, o Direito busca adaptar-se, leis são ignoradas, a Justiça é contestada. E isso redesperta um barbarismo ainda latente na alma do povo. O da “lei das selvas”. E foi, durante a ditadura, a que muitos tiveram que recorrer diante da perda de fé também no Judiciário daquela época. Aconteceu, em muitas situações, o “defenda-se quem puder”.

Foi preciso, como que último recurso. Houve um tempo em que ameaças à família do jornalista – em especial a filhos tão amados – tornara-se crescente. Bandidos e policiais haviam-se unido no tráfico de drogas. Estávamos sob a ditadura na qual – pelas palavras o próprio vice-presidente Pedro Aleixo – advertira: “o perigo está no guarda da esquina”. Tornara-se a hora das vinganças paroquiais. Em busca da defesa de seus filhos, o jornalista recorreu à Polícia, à Justiça. Um dos bandidos, jovem ainda, relatava, diariamente, o trajeto das crianças da casa à escola, o horário delas. “Não ataquei porque não quis”.

“Defenda-se quem puder”... Lancei, de público, um desafio ao jovem delinquente, aliás, de família honrada e reconhecida. Era simples: um “duelo” em praça pública.

As armas: a cinta, o cinto de cada um. Dia e hora marcados. No jardim principal. Multidão lotou o espaço. Esperei, com minha cinta nas mãos. Mas o bandidinho não compareceu. E as ameaças terminaram. Foi o cada um por si, por sua família, por sua gente. E querem o retorno da tirania?

Cecílio Elias Netto é jornalista e escritor.

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