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Kendo - o caminho da espada em Piracicaba

Por Da Redação |
| Tempo de leitura: 14 min

O Kendo, a tradicional arte marcial japonesa conhecida como “o caminho da espada”, chegou a Piracicaba graças à paixão de um pequeno grupo de praticantes que, há mais de duas décadas, decidiu cultivar disciplina, técnica e valores que vão muito além do combate com espadas de bambu. Nesta entrevista, o Dr. Edno Tsugami — médico ortopedista, acupunturista e 3º Dan de Kendo — conta como trouxe o esporte para a cidade, resgata a história do Dojo local e compartilha a essência desta prática que combina corpo, mente e espírito. Do ensino voluntário e das dificuldades iniciais à formação de novos kenshis, Dr. Edno fala sobre os desafios, os aprendizados e a esperança de ver o Kendo crescer e transformar vidas em Piracicaba.

O sr. é médico ortopedista em Piracicaba e praticante da arte marcial japonesa Kendo. Pode nos contar o que o fez trazer esse esporte para a cidade?

Desde a infância, eu tinha o desejo de praticar Kendo, pois meu pai foi praticante no Japão e sempre falava com entusiasmo sobre esse esporte. Ao longo da minha vida, pratiquei diversas artes marciais, mas a oportunidade de iniciar no Kendo surgiu por volta de 2002, na antiga academia do Sensei de Karatê Silvio Giatti.

Na época, havia começado a prática de Kenjutsu, do estilo Katori Shinto Ryu, uma das escolas mais antigas, com o professor Adriano Pereira, de Santos/SP.

No entanto, com pouco tempo de prática, começamos a enfrentar dificuldades devido à ausência frequente do professor, que morava em outra cidade e tinha dificuldade para manter uma rotina regular de aulas.

Foi então que entrei em contato com a comunidade nipo-brasileira de Campinas, que me apresentou ao Sensei Hasegawa, de Jundiaí, na época, 5º Dan de Kendo.

Assim teve início o verdadeiro Kendo em Piracicaba, com um pequeno grupo de praticantes, sob a orientação do Sensei Hasegawa, que, durante cinco anos, deslocou-se semanalmente de Jundiaí até Piracicaba para nos ensinar com dedicação e disciplina.

Aliás, o Kendo é a única arte marcial em que o ensino deve ser voluntário, não pode ser remunerado, o que torna ainda mais admirável o compromisso do Sensei.

Os praticantes foram evoluindo, conquistando graduações e participando ativamente de seminários, campeonatos, chegando até a participar em um Sul-Americano.

Para ministrar aulas de Kendo, é necessário ser federado à CBK (Confederação Brasileira de Kendo) e possuir, no mínimo, o 3º Dan.
Conforme o grupo avançava, assumi a responsabilidade pelo Dojo de Piracicaba após obter meu 3º Dan em 2008, sempre sob a orientação do Sensei Hasegawa e representando o Mizuho Dojo de Jundiaí/SP.

É importante salientar que essa parte da história do Kendo em Piracicaba, infelizmente, foi omitida no livro “100 Anos da Imigração Japonesa em Piracicaba”, publicado em 2018.

Nas páginas dedicadas às artes marciais, não há qualquer menção ao início do grupo de Kendo e ao trabalho voluntário do Sensei Hasegawa.
Trata-se de um capítulo construído com esforço, disciplina e dedicação, e que merece ser reconhecido como parte legítima da memória da comunidade e da trajetória do Kendo em Piracicaba.

Aproveito, portanto, a oportunidade para corrigir esse equívoco histórico e prestar o devido reconhecimento ao Hasegawa Sensei, cuja generosidade e compromisso permitiram o início do verdadeiro Kendo em nossa cidade.

Esperamos que esse equívoco seja corrigido nas edições futuras desse livro, incluindo, nas páginas dedicadas ao Kendo, a verdadeira história de sua origem na cidade.

Enquanto responsável pelo Kendo em Piracicaba, ao longo dos anos, busquei diferentes espaços para manter as aulas em funcionamento, sempre em locais que oferecessem estrutura adequada para os treinos. Todos esses espaços foram cedidos voluntariamente, sem qualquer custo, graças ao apoio e compreensão de parceiros comprometidos com a disseminação da arte.

O último local de treino foi no Clube Nipo de Piracicaba, onde as atividades se mantiveram normalmente até 2013. Naquele ano, por motivos de saúde na família, fui forçado a me afastar da liderança do grupo.

Nesse período, deixei a continuidade dos treinamentos sob a responsabilidade de Renato Gondo e Carlos Hanada, que, na época, eram os praticantes mais graduados disponíveis para assumir essa missão com responsabilidade. No entanto, com o tempo, ambos também enfrentaram dificuldades pessoais e precisaram se afastar da prática.

O grupo acabou se dispersando, mas não perdeu o contato, a amizade e o espírito do Kendo permaneceram.

Ainda foram realizadas algumas práticas esporádicas no Lar dos Velhinhos de Piracicaba, que gentilmente cedeu seu espaço.

Em 2024, o grupo de praticantes mais graduados se reuniu novamente com o propósito de reiniciar os treinamentos, desta vez na cidade de Jundiaí, enquanto aguardava a viabilização de um novo espaço em Piracicaba.

Esse espaço foi conquistado graças ao apoio do meu amigo, Professor Doutor Antônio Hyoei Higa, que gentilmente intercedeu em favor do grupo, possibilitando a utilização de uma sala nas dependências da ESALQ/USP.

Assim, foi fundado o Dojo Mizuho ESALQ/USP, filial do tradicional Mizuho Dojo de Jundiaí e federado à CBK (Confederação Brasileira de Kendo), marcando o renascimento do Kendo em Piracicaba.

Posteriormente, conseguimos também um espaço na SOBASDI (Sociedade Beneficente Amigos do São Dimas), o que possibilitou ampliar as atividades do grupo, com treinamentos regulares duas vezes por semana.

Atualmente, nossas atividades seguem sob a supervisão técnica do Sensei Hasegawa, hoje, 7º Dan de Kendo, e do Senpai Augusto Nishimura, 5º Dan.
Também não poderíamos deixar de reconhecer e agradecer ao Sr. Edgar Campachi, praticante veterano, grande amigo e fiel companheiro do Sensei Hasegawa em todas as suas vindas a Piracicaba. Seu apoio e dedicação fazem dele uma parte essencial da história da arte na nossa cidade.

O grupo de graduados que atualmente compartilha a responsabilidade pelas aulas, além de mim, é composto por: Renato Gondo (2º Dan), Carlos Hanada (1º Dan), Luís Antônio Lopez Caero (1º Dan) e André Caero (1º Kyu), todos federados e comprometidos com o ensino e a continuidade do Kendo em Piracicaba.

Para quem está de fora, o Kendo pode parecer um combate com espadas de bambu. Porém, sabemos que vai muito além. Como o Sr. explicaria a verdadeira essência do Kendo, e qual é a lição mais importante que o Sr. tenta transmitir aos seus alunos desde a primeira aula?

 A verdadeira essência do Kendo está enraizada no Bushidô, o código de honra dos samurais que, embora jamais tenha sido formalmente escrito, era amplamente conhecido, seguido e respeitado.

Esse código guiava valores fundamentais como lealdade, coragem, respeito, justiça, honra, compaixão e honestidade.
Descumpri-lo não apenas acarretava desonra, mas, em muitos casos, resultava em uma vergonha tão profunda que podia levar à prática do seppuku, o ritual de suicídio reservado aos samurais como forma de restaurar a honra perdida.Mais do que uma arte marcial, o Kendo é, ainda hoje, uma forma de cultivar esse espírito, treinando corpo e mente para agir com integridade, disciplina e respeito, dentro e fora do dojo. É isso que transmitimos aos praticantes desde a primeira aula.

O Kendo tem as suas raízes nas técnicas de samurai, o Kenjutsu. Como esta arte marcial ancestral evoluiu para o esporte moderno e disciplinado que vemos hoje, e o que foi mantido do seu espírito original?

A classe dos samurais foi oficialmente extinta em 1868, com o fim do Período Edo e o início da Era Meiji, quando o Japão abriu suas portas ao comércio com o Ocidente e o poder foi restaurado ao imperador.

Naquela época, existiam inúmeros estilos de Kenjutsu, a arte do manejo da espada, praticados por escolas distintas em todo o país. Com a modernização do Japão durante a Era Meiji (1868-1912), houve um grande esforço para unificar essas escolas e sistematizar o ensino da espada. Em 1912, o termo Kendo foi utilizado oficialmente pela primeira vez, substituindo o nome Kenjutsu.

Diferente do Kenjutsu, que ainda é praticado como arte tradicional e mantém seus diversos estilos, o Kendo é único, padronizado como modalidade moderna e reconhecida internacionalmente, sem subdivisões de estilo.

Ainda assim, o Kendo carrega em sua essência uma herança de mais de mil anos, por ser diretamente derivado do Kenjutsu. A prática do Bushidô permanece viva no Kendo moderno, agora preservada sem a necessidade de extremos como o seppuku, mas ainda guiada pelos mesmos princípios de disciplina, respeito, coragem e integridade.

No meu caso, essa diferença entre o passado e o presente sempre foi muito clara. Meu pai foi praticante de Kendo voltado à guerra (2ª Guerra Mundial) com uma abordagem semelhante ao Kenjutsu, e dela ele participou como piloto Kamikaze aos 16 anos de idade. Por isso, ele nunca quis me ensinar - dizia que o Kendo que aprendeu era “para matar”. Já adulto, encontrei no Sensei Hasegawa e em sua forma de ensinar um Kendo para salvar, voltado à formação do espírito, à superação pessoal e à construção de caráter.

Fico feliz em poder relatar aqui a história de vida de vários praticantes desde o início do Kendo na cidade.

Ao longo dessa trajetória, muitos se beneficiaram com a prática, seja no crescimento profissional, seja no desenvolvimento pessoal, assumindo responsabilidades familiares e sociais com maturidade.

Mas um depoimento em especial me marcou profundamente: o de um praticante que relatou que o Kendo salvou sua vida, pois esteve muito perto de cometer suicídio devido a uma profunda depressão.

Esse testemunho revela a verdadeira força do Kendo: não apenas uma arte marcial, mas um caminho capaz de transformar, resgatar e dar sentido à vida.

Durante um torneio, o que define um golpe perfeito? É apenas a precisão e a força, ou existem elementos mais sutis, como a postura, o espírito (ki) e o timing, que os árbitros avaliam e que fazem a real diferença?

No Kendo, o golpe válido é chamado de Y?k?-Datotsu, que significa literalmente “golpe eficaz e com valor”. É esse o tipo de golpe que conta como ponto durante uma luta, a força nunca é utilizada.

Para que um Y?k?-Datotsu seja reconhecido, ele precisa obedecer ao princípio do Ki-Ken-Tai-Ittchi, a perfeita união entre energia (ki), espada (ken) e corpo (tai).

Ou seja, o golpe deve ser aplicado com:

- um kiai forte e claro, demonstrando intenção e espírito combativo;
- o shinai (espada de bambu) deve atingir corretamente a área permitida;
- o corpo deve estar em sincronia total com o movimento, mantendo a postura e a técnica corretas.

Além disso, é essencial demonstrar o zanshin, o estado de alerta contínuo e presença total mesmo após o golpe, provando que o praticante permanece consciente, focado e pronto para o que vier.

Velocidade, potência, intenção, forma e continuidade. Tudo isso deve acontecer ao mesmo tempo para que um golpe seja considerado realmente válido no Kendo.

Em uma luta, cerca de 90% dos golpes aplicados não são considerados válidos, justamente porque faltam um ou mais dos elementos essenciais descritos no princípio do Ki-Ken-Tai-Ittchi ou no Zanshin.

Pode ser que o golpe tenha sido rápido, mas sem a postura correta, ou que tenha havido kiai e movimento corporal, mas sem o contato técnico adequado com o alvo, ou ainda que, após o golpe, o praticante tenha se desconectado mentalmente da luta, falhando em demonstrar o zanshin.
No Kendo, mais do que acertar, é preciso acertar com intenção, forma e espírito. É por isso que ele vai além de uma luta. É um caminho de disciplina, autocontrole e busca constante por aprimoramento.

Dois elementos que sempre impressionam são o kiai (o grito) e o zanshin (a vigilância após o golpe). Qual é a função espiritual e técnica destes elementos?

Como eles elevam o kendo de uma mera troca de golpes para uma expressão artística e marcial? O Kiai tem a função de canalizar toda a energia física e mental no momento da execução do golpe, revelando não apenas a força, mas, principalmente, a intenção do praticante. É por meio do kiai que se indica o alvo pretendido: seja kote (punho), men (cabeça), d? (tórax) ou tsuki (estocada na garganta).

Além do kiai, há também o kake-goe, que é o grito ou a vocalização constante feita antes do kiai, do golpe final. Ele serve para preparar o espírito e também para exercer pressão psicológica sobre o adversário, mantendo o foco e a presença durante o combate.

Já o zanshin é a postura mantida após o golpe, demonstrando estado de alerta, prontidão e controle. Ele se manifesta no olhar firme, na energia contínua e na conexão total com o adversário e com o momento presente.

O que torna o Kendo belo e singular não é apenas a aplicação do golpe, mas a perfeita harmonia entre corpo, mente e espírito, evidenciada nos princípios do Y?k?-Datotsu. Ao mesmo tempo, é uma expressão marcial autêntica, sustentada por um espírito combativo verdadeiro.

Na cultura do Kendo, a relação entre sensei e aluno é profundamente respeitosa. Como o Sr. descreveria a sua responsabilidade não apenas como um técnico que ensina golpes, mas como um mentor que guia no “Caminho da Espada”?

A principal característica do Kendo é o profundo respeito cultivado pelos praticantes ao Dojo (local de treino), ao Sensei (mestre) e ao Sagrado. Cada treino se inicia com o Mokuso (meditação silenciosa), seguido de reverências formais que expressam gratidão e humildade diante da tradição, do local e das pessoas envolvidas. Ao final, esse mesmo ritual é repetido, reforçando a disciplina e o espírito de introspecção.

No Kendo, o Sensei não é visto como um técnico ou treinador, mas como alguém responsável pela lapidação do caráter do kenshi (praticante), orientando-o segundo os princípios do Bushidô, o código de conduta dos antigos samurais.

Mais do que formar lutadores, o Kendo busca moldar seres humanos íntegros, disciplinados e conscientes, capazes de contribuir como seres úteis para a sociedade.

O Kendo é praticado em todo o mundo. O Sr. percebe diferenças significativas na forma como o kendo é abordado ou sentido pelos praticantes no Japão em comparação com o Brasil ou outros países? Não. Os princípios do Kendo permanecem os mesmos em todas as academias do mundo. No Kendo, existe apenas um caminho: o da tradição.

Tudo o que foge disso é invenção. Respeitar a forma é respeitar a essência, como já dizia um antigo mestre.

O Kendo moderno, mesmo com adaptações ao formato esportivo e pedagógico, continua sendo a preservação viva do espírito samurai.
A verdadeira diferença está no acesso à prática do Kendo. No Japão, há cerca de 2 milhões de praticantes, no Brasil cerca de 1.500 a 2.000. 
Isso se deve a fatores como o alto custo dos equipamentos, pouca divulgação da modalidade e a concentração da maioria das academias no estado de São Paulo.

Ainda assim, o Brasil figura entre os cinco melhores do mundo no cenário competitivo do Kendo, o que comprova a seriedade e a qualidade técnica dos brasileiros.

Muitas mulheres estão se interessando hoje pelo Kendo que era um esporte eminentemente masculino. Pode nos falar sobre isso? Na época feudal, ainda que em menor número, existiam mulheres samurais, conhecidas como onna-bugeisha, que praticavam kenjutsu e iam para as batalhas lado a lado com os homens, demonstrando coragem e habilidade em combate.

Hoje, no Kendo moderno, a participação feminina ainda é proporcionalmente pequena. No Japão, há cerca de 500 mil praticantes mulheres, o que representa aproximadamente 25% do total. No Brasil, estima-se que cerca de 15% dos praticantes sejam mulheres.

Ainda que representem uma minoria, as mulheres vêm conquistando cada vez mais espaço, quebrando barreiras e contribuindo significativamente para a expansão e o fortalecimento do Kendo.

A partir de qual idade uma criança pode iniciar o treinamento de Kendo e o que ele pode trazer de benefícios a educação dos jovens?

 O Kendo pode ser praticado a partir dos 6 ou 7 anos de idade, dependendo da maturidade da criança e da estrutura do Dojo. Nessa fase inicial, o foco está no aprendizado de postura, etiqueta, disciplina e fundamentos básicos com o shinai (espada de bambu).
Adolescentes e adultos podem iniciar em qualquer idade, inclusive muitos começam após os 30, 40 ou até mais. O mais importante não é a idade, mas a disposição para aprender e o respeito pela prática.

Com um instrutor experiente, também é possível adaptar os treinos para crianças menores ou para pessoas com necessidades específicas, promovendo uma vivência acessível e inclusiva.

Entre os diversos benefícios do Kendo, destaca-se o aumento da capacidade cardiorrespiratória, por ser um exercício aeróbico intermitente de alta intensidade, desenvolvimento do equilíbrio, reflexo, coordenação motora, força e longevidade. Além disso, podemos considerar a formação do caráter e o desenvolvimento do respeito ao semelhante, valores fundamentais que acompanham o praticante para toda a vida.

Por fim, como o Sr. vê o futuro do Kendo em Piracicaba e do Dojo?

Como uma semente que foi plantada, espera-se que o Kendo em Piracicaba continue crescendo e conquistando cada vez mais praticantes, mesmo diante das limitações de acesso, especialmente quanto ao custo dos equipamentos.

Nossa expectativa é, em breve, participar de campeonatos, seminários e exames de graduação. Também temos um projeto para apresentar o Kendo em escolas, ampliando o conhecimento sobre essa arte marcial, divulgando seus valores e possibilitando que mais pessoas tenham acesso à prática.
Pessoalmente, cultivo o desejo de que kenshis fortes e comprometidos sejam formados, sob a orientação do nosso Sensei e Senpai, e que estejam preparados para dar continuidade ao trabalho, mesmo na minha ausência.

Afinal, acredito que formar bons praticantes e, acima de tudo, bons seres humanos é o que constrói as bases sólidas para que o caminho nunca se interrompa, passando os ensinamentos de geração em geração.

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