A sociedade em sua hipocrisia habitual quer negar e rechaçar o ódio. Não é um sentimento louvável nem moralmente virtuoso, mas é uma inegável emoção humana. Porém, se avançarmos além da hipocrisia e do discurso politicamente correto, é possível aceitar que o ódio tenha uma função nesse maremoto de sentimentos humanos, qual seja, a de nos impulsionar para além da inércia paralisante.
Não se trata de uma impulsão para a violência física, vale deixar bem claro. Mas o ódio (assim como a raiva) pode ser canalizado para ações de defesa (contra quem odiamos) ou para construirmos algo em contraposição àquilo que odiamos. Agora querem tipificar o ódio como crime. E isso é muito grave. Amanhã, vão criminalizar também os pecados da gula e da inveja. Há muito tempo, desde o Direito Romano, já se puniam atos de violência contra a vida ou contra a destruição do patrimônio, independente se estes atos se originaram de um impulso (não controlado) de ódio, ira ou raiva. Mas agora se quer tipificar a própria emoção (pathos, do grego) do ódio como crime.
Mas odiar faz parte da vida e é inerente ao ser humano. É uma emoção que até aquele idílico «bom selvagem» de Rousseau possuía. Mesmo Jesus já disse com todas as letras: «Se alguém vem a mim e não odeia a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs, e ainda a sua própria vida, não pode ser meu discípulo» (Lucas 14:26).
O verbo «odiar» nesse versículo é a tradução do verbo grego μισε?ν (miseî), cujo significado é: “odiar, detestar, rejeitar com hostilidade”. Odiar também tem seu radical latino «od?/odisse», no qual «od? » significa “eu odeio, detesto” e deriva do substantivo latino «odium » (ódio, aversão, repulsa). O verbo carrega em seu sentido etimológico o sentimento de repulsa intensa, uma aversão moral ou emocional contra alguém ou algo. Mas traz consigo o sentido de preterir.
Ao emitirmos um discurso de ódio contra pai, mãe, irmãos, família, amigos, inimigos, minorias e maiorias, estamos também exercendo o direito de preterir este em relação àquele. E o direito de
preterir está intrinsecamente ligado ao direito de escolher.
Não preciso que meu ódio aniquile a existência do outro, preciso apenas que esse ódio me afaste daquele outro. Não posso seguir Jesus se não preterir a minha própria família. O budismo acolhe os sentimentos de ódio e raiva quando, ao meditarmos, conseguimos visualizar esse sentimento dentro de nós e contemplá-lo. A contemplação do ódio em nós traz a compreensão do sentimento. Não é possível esvaziar a mente se não tivermos (antes) consciência do que tem nela.
O ódio é o clássico par antitético do amor. É a dualidade entre luz e sombra, medo e coragem. Ao contrário do discurso hipócrita moralizante, não se deve reprimir o ódio, mas devemos deixá-lo fluir. Não dá para viver sem odiar a nada. Ao menos alguma coisa (ou alguém) sempre vamos odiar.
Mas porque alguns discursos de ódio são permitidos e outros não? Podemos odiar os alemães por serem nazistas e terem dizimado judeus? E odiar judeus por terem aniquilado palestinos? Nas cruzadas, não era permitido aos cristãos odiar muçulmanos? E os muçulmanos não podem odiar todos aqueles que são hereges e não creem na verdadeira fé de Allah?
Vegetarianos não podem odiar os magarefes? Os petistas não podem odiar o ex-presidente e os bolsonaristas não podem odiar o Lula?
E agora a pergunta final: talvez eu até possa odiar, mas não posso pôr em palavras meu ódio e proferi-las num discurso? Pouco a pouco estamos perdendo nossa liberdade por não poder expressar o que pensamos (mesmo que estejamos equivocados). Ao nos calarmos, aquilo odiamos nos aprisiona.
Kazuo S. Koremitsu é economista com doutorado em Direito.