Parece que o tal «discurso do ódio» está a cada dia ganhando força e se disseminando na sociedade qual pólvora incendiada. Contudo, até agora, não paramos para refletir o que é o «discurso de ódio», pois o termo - e por extensão seu conceito - me parece genérico e subjetivo demais para ser usado para qualquer discurso. Como um pressuposto básico é necessário que se reflita sobre o ódio em si mesmo para depois externá-lo num discurso a terceiros.
Ódio é, antes de mais nada, um substantivo abstrato pertencente à semântica das emoções negativas intensas como: aversão, rancor, hostilidade, raiva, desprezo ou repulsa. Diferencia-se da raiva na medida em que esta é passageira e aquele duradouro. Vale a metáfora: raiva é fogo que queima; ódio, o carvão em brasa que arde. Não é necessário dizer que o ódio, enquanto sentimento, não é algo desejável ou louvável, porém ele existe e não pode ser ignorado.
O ódio, segundo a psicologia, pode ser uma forma de proteção a um ego frágil; uma projeção de aspectos indesejados de si mesmo em um outro. A raiz do ódio pode advir de experiências traumáticas, como abuso, humilhação profunda ou negligência. O ódio direciona nossa dor para fora, evitando um colapso interno (mecanismo de defesa). E o ódio possui uma natureza paradoxal e até curiosa: ele é um vínculo que se estabelece entre quem odeia e a pessoa (ou grupo) odiada. No fim das contas é uma relação simbiótica negativa onde o odiador gasta sua energia com outrem.
Visto isso, vamos ao ódio extravasado, posto para fora como um discurso verbal ou escrito e, portanto, tornado público. Seria isso o «discurso de ódio»? Bem, ainda não, para se caracterizar como tal (hate speech) é fundamental que haja real incitamento à violência. O artigo 20, do Pacto Internacional da ONU sobre Direitos Civis e Políticos (1966) assim o conceitua: “qualquer apelo ao ódio nacional, racial ou religioso que constitua incitamento à discriminação, à hostilidade ou à violência”. Mas a incitação precisa ser concreta e não abstrata ou vaga.
Há também uma determinação da União Europeia, no campo da legislação penal que obriga os Estados-membros a criminalizar formas graves de discurso de ódio, como a incitação pública à violência ou ódio contra grupos ou pessoas com base em raça, cor, religião, ascendência ou origem nacional/étnica.
No Brasil, algo próximo esse conceito está na Lei n. 7.716/89: no seu artigo 1 («Serão punidos, na forma desta Lei, os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional») e no 20 («Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito (…)»). E complementa: «o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência ».
No Brasil, a exteriorização do ódio é criminalizado se implicar em discriminação (ou preconceito) e, ainda assim, apenas e tão somente quando for específico sobre (1) raça, (2) cor de pele, (3) etnia, (4) religião ou (5) procedência nacional. Conclui-se que o discurso do ódio não poderá recair sobre esses cinco objetos (e só).
Posso (e devo?) sentir ódio de nazistas, torturadores, tiranos e estupradores, pois é politicamente correto. Não posso, porém, sentir ódio de uma pessoa em especial, de um grupo de pessoas, de uma profissão ou uma ideologia política? Ou terei o direito de sentir ódio, mas não o direito de externá-lo em público? Seria hipócrita demais negar o ódio, enquanto sentimento que todos nós estamos sujeitos a ter. Mas agora estão querendo proibir-nos de expressá-lo (pacificamente) em público.
Se não posso odiar, não posso preterir, se não puder excluir quem (ou o que) não gosto, não posso escolher. Quando não há se pode escolher, a liberdade já não existe mais.
Kazuo S. Koremitsu é economista com doutorado em Direito.