ARTIGO

Lírios dos campos, avezinhas dos céus

Por Cecílio Elias Netto |
| Tempo de leitura: 3 min

Quando se tem o privilégio de memória ainda viva, há, também, que se buscar o mínimo de sabedoria diante das lembranças evocadas. Nelas, está como que um caleidoscópio vivo exsudando cores da alma. Inclusive, o roxo, símbolo da dor e do sofrimento. Nem tudo é “ouro sobre azul”. E nem, sob o céu, passa apenas a “branca nuvem”. É o desafio de conviver com o mistério de existir.

Ao alongar-se o tempo, convive-se mais com recordações do que, talvez, com o cotidiano. É como se fosse um violino no qual, ao se emitir o primeiro som, este o impulsionasse a outro, e a mais outro. Até, então, alcançar-se a harmonia. Pois, na experiência da vida, um fato pode inspirar lembranças – umas após outras – que, desfilando pelos vãos d´alma, despertam-nos o que parecia adormecido. São filmes que se reproduzem de um final para começos. O fim faz retornar o princípio.

Foi-me o esforço na tentativa de apenas plantar a mudinha de flor num dos espaços vazios do jardim. Ah! como era bom fazê-lo com desembaraço; braços, pernas, músculos desenvoltos, mãos coalhadas da terra generosa. A vida cobrou do corpo e ele paga o débito, grato, porém, pela vitalidade recebida ao longo da quase imensidão de tempo. Não conseguiu plantar. Mas, então, a memória veio-lhe em auxílio e foi transportado a uma casinha humilde, com um pequenino quintal onde imperavam a mangueira majestosa e a horta da família.

De repente, lá estava ela, ajoelhada, plantando na terra que parecia sorrir-lhe. Ela, sua mãe, a dona Amélia. Que murmurava a cantiga de roda inesquecível: “Terezinha de Jesus, de uma queda foi ao chão...”  E o menino, ao lado, querendo ajudar. A poucos metros deles, seu pai observava-os como se encantado, os olhos parecendo registrar para sempre a cena tão aparentemente comum. Ou tão comum já não o teria sido?

Sim, feridas – até mesmo as graves – o tempo cura-as. Muitas, quase todas. As incuráveis, dores inesquecíveis, no entanto, de tal e estranha maneira se amenizam que parecem tornar-se punhaladas agridoces. Doem suavemente. E ficam íntimas de nossos mais pulsantes sentimentos. Tornam-se a saudade triste. Pois há saudade risonha, lembranças que nos transportam suspirosamente ao vivido com alegria. Quase um querer outra vez.

A memória, lembranças, recordações... Por que – na pobreza toda daquelas décadas de 1940/50 – a herança, mesmo assim, foi a de um mundo mais generoso, mais cordial? Ou não é exatamente nisso que estaria a explicação: a cordialidade? Éramos cordiais. O coração estava no centro da sabedoria de viver. Dizíamos: “coração de ouro, coração na mão, do fundo do coração, sempre no meu coração, coração de leão, coração mole...” E os “sem coração”.

O fato é que, não conseguindo plantar a mudinha num pedaço de jardim, ao escrevinhador valeu-lhe o breve mergulho na memória. Doces lembranças pareciam mais vivas do que os amargos desafios atuais. Foi quando palavras – há milênios pronunciadas – vieram-lhe aos lábios: “Olhai os lírios dos campos, as avezinhas dos céus...”

Os lírios vestem-se mais belamente do que reis e rainhas. E não tecem e nem fiam. Avezinhas dos céus – sem precisarem plantar e colher – encontram alimentos no que ainda restou do paraíso original. É isso, pelo menos, o que nos foi lembrado. Mas... O que fizemos de lírios, de campos? E as avezinhas? Sob que céu sem poluição voariam?  Eis, então e quando, apaga-se a memória. Pois, evita reter a revelação de o homem ter sido criado à “imagem e semelhança de Deus”. Um Hitler, imagem divina? Recordações também castigam.

Cecílio Elias Netto é jornalista e escritor.

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