ARTIGO

Conforto no não-saber

Por Cecílio Elias Netto |
| Tempo de leitura: 3 min

Cada dia que passa, mais vou deixando de ser jornalista. Se, na realidade, algum dia eu o fui. Pois, já percebera, de maneira marcante, estar excluído da enriquecedora atividade quando surgiu o chamado “jornalismo objetivo”. Senti-o como algo, para mim, inteiramente sem graça. Ora, noticiar sem adjetivar coisas, fatos, atos? Ô, raios! Eles propuseram noticiar algo mais ou menos assim: “Na rua tal, na hora qual, fulano agrediu beltrano.” E ponto final.

Como concordar com tal insensibilidade? Quando – lá na época de Matusalém – fui iniciado na aventura de escrever, a notícia precisava ter sabor.  O objetivo era o de oferecer, ao leitor, a possibilidade de sentir, também, a emoção do ocorrido. Assim – perceba-se a delícia – a referida agressão de fulano a beltrano haveria de ser relatada com a alma do redator. Contá-la, então, com sentimento.

E seria – se já não me esqueci daquela arte – mais ou menos assim:

“Num entardecer sombrio, na silenciosa rua de uma região desolada, veio a acontecer uma tragédia shakespeareana. Um pobre cidadão, mergulhado em indefinível tristeza, perambulava imerso em sua dor. Eis que, inopinadamente, de súbito, saído da penumbra que o pôr do Sol propiciava, surgiu um outro cidadão amargurado que agrediu a indefesa vítima. Policiais, com o cavalheirismo e a delicadeza que lhes são peculiares, abordaram os circunstantes e agiram com sabedoria. Vítima e agressor foram convidados a se pacificarem, deram-se as mãos e dirigiram-se a seus destinos.”

Nesse estilo, redigiríamos a ocorrência. Assim – caramba! – deveria ser divulgada a notícia. Pois, se a vida é uma novela – com seus dramas, tragédia e comédia – o mais inteligente seria, talvez, dramatizar a informação. Tratava-se de estar no teatro da vida. Pois, a palavra ator, em grego, é “hypockrités”, aquele que finge, o intérprete, o hipócrita. Refere-se, assim, a nós, humanos. E, portanto, não apenas aos ancestrais lá dos tempos de Homero. Mas, também, aos desse momento de essenciais falsidades, de tantas máscaras necessárias para sobreviver.

Viver precisaria ser entendido também como arte de construir. É uma história de cada tempo, de coletivos. No entanto, o enredo já nos tem sido posto. Com princípio, meio e fim. Há desinteresse por se saber como o filme termina. Mas, atualmente, “no fim, o bandido vence o mocinho”. Os autores do enredo – controladores de nossa humanidade – definiram que os personagens da notícia devem controlar sentimentos, emoções. Homem não chora. Lugar de mulher é na cozinha. Trabalhar seria honroso, dignificante. Ao contrário, pois, do que se ordenou a Eva e Adão: “vão ganhar a vida com o suor do rosto”.

Fantasia? Sim. Mas qual a outra maneira de superar a áspera realidade que nos apequena a bendição da vida? Ora, a mais ansiada ambição do ser humano é a felicidade. No entanto, ainda se discute o que seja isso. Caso se tratar de algo próximo à infinitude, o finito do humano jamais o conhecerá. Conscientes disso, saberíamos, então, agradecer os repentes de felicidade que chegamos a conhecer. Por alguns momentos, por alguns dias...

Vivi tempos amorosos com bela e inteligente dama. Ela negava-se a saber de novos acontecimentos, de informar-se das ocorrências. Justificava-se: “Aquilo que não sei não existe.” Na realidade, porém, existe. No entanto, vejo-me tentado a viver a experiência do não-saber, do não-querer saber. A cotidiana enxurrada de informações tornou-se asfixiante. Se quase mais nada sei de mim próprio, por que pretender saber do mundo? Segundo a história de nosso início, Adão e Eva foram castigados pelo simples desejo de conhecimento. Ou por outra coisa? Logo, Riobaldo tinha, realmente, razão: “Viver é perigoso”.

Cecílio Elias Netto é jornalista e escritor.

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