ARTIGO

Comida caipira, Jamile...

Por Cecílio Elias Netto |
| Tempo de leitura: 3 min

Em relação à culinária, gastronomia, cozinha, este escrevinhador pode revelar uma única especialidade: “fazer pipoca”. No micro-ondas. E, de quando em vez, erra até mesmo no tempo necessário para o milho “pipocar”. No entanto, reconhece não ter qualquer talento para essa que é uma das mais primorosas artes humanas, a culinária. Outro agravante: desde criança, sempre foi expulso da cozinha. “Não venha atrapalhar...” – diziam-lhe. Por outro lado – talvez, essa Freud explique – delicia-se com leituras de culinária e gastronomia. Frustração? Certamente. Apenas outra das tantas na vida.

E, numa dessas leituras, eis que ele encontra referências quase reverenciais à Jamile Japur. À notável e singularíssima Jamile Japur. E o escrevinhador sente-se tomado como que de tristeza, de remorso, de arrependimento. Pois, Jamile Japur foi uma das personalidades mais reconhecidas e admiradas da cultura paulista, certamente da cultura nacional. Piracicabana da gema, daqui ela levou as sementes que lhe fizeram brotar frutos da privilegiada inteligência.

É, pois, imperdoável omissão para quem, ao longo da vida, apenas quis cantar e contar as riquezas de nossa terra! Como não ter cantado e exaltado o pioneirismo, a consagração da obra de Jamile e dela própria? Mais ainda lamentável por lembrar-se das relações familiares com os Japur, os Sachs, os Flávio Toledo Piza. Foi, ainda, no IV Centenário da cidade de São Paulo (1954) que o talento de Jamile se tornou popularmente conhecido. Ela já integrava um selecionado grupo de intelectuais, de pioneiros folcloristas paulistanos. Companheira do consagrado Rossini Tavares de Lima, um dos precursores no aprofundamento do estudo folclórico no Brasil, ela se notabilizou por si mesma.

O IV Centenário. Como esquecê-lo? E como fora possível – a uma criança então com 13 anos de idade – ter ido àqueles festejos? O idoso escrevinhador ainda guarda detalhes da aventura. Um menino viajando a São Paulo, com dois amiguinhos, sem nenhum adulto a acompanhá-los... E a chuva de estrelinhas de prata; o orgulho pelo surgimento dos monumentos no Ibirapuera; a recomendação dos pais para, em encontrando com Jamile, dar-lhe um abraço de saudade... Jamile, tia dos nossos também notáveis João Carlos (Marilda) Japur Sachs.

Jamile Japur impactou os meios intelectuais ao escrever e publicar o livro que se tornaria como que a “bíblia” nas pesquisas e estudos da alimentação em São Paulo: o singular “Cozinha tradicional paulista”. Foi onde e quando ela historiou a origem popular de nossa alimentação reconhecidamente caipira, apresentando as receitas criadas pelas antigas cozinheiras do interior paulista. O seu objetivo foi preservar, também, uma memória do passado caipira de São Paulo. Nossas origens. 
Jamile – junto à elite cultural de São Paulo – era, carinhosamente, conhecida como a “Caipirinha”. Que elogio também às raízes caipiracicabanas! Pois, a riqueza que Jamile perpetuou estava numa de nossas mais valiosas realidades: a comida caipira, essa delícia “de cumê”, de nossa gente que “véve prá cumê”.

Penso em nossa beira-rio, na Rua do Porto. O histórico local assume-se como centro gastronômico. Que deveria ser entendido onde se saboreassem as especialidades de uma cozinha local. No entanto, já houve no local quem denominasse de “fish” a oferta de peixe. E Jamile proclamara herança deixada por nossos ancestrais indígenas: o cará, a canjica, a pamonha, o curau, o pirão, a paçoca, o viradinho de feijão, o cuscuz, a pururuca. Não estaria, nessa comida caipira, a identidade da Rua do Porto?

Cecílio Elias Netto é jornalista e escritor.

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