“MEDIRAM MEU CRÂNIO”

Aluna perde vaga em Medicina por não ser considerada parda; veja

Por Bia Xavier - JP |
| Tempo de leitura: 3 min
Reprodução / Redes Sociais
Samille Ornelas, de 31 anos, sempre se autodeclarou como parda.
Samille Ornelas, de 31 anos, sempre se autodeclarou como parda.

Aprovada em Medicina na Universidade Federal Fluminense (UFF), a baiana Samille Ornelas, 31 anos, viu seu sonho ser interrompido por uma decisão judicial que cassou sua matrícula. Autodeclarada parda e ex-aluna de escola pública, Samille teve sua inscrição pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu) barrada pela universidade por não apresentar, segundo um comitê, “características fenotípicas” compatíveis com a vaga destinada a cotistas.

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Ela chegou a iniciar os estudos após obter uma liminar na Justiça. No entanto, após cursar todo o primeiro semestre e prestes a concluir as últimas provas do período, a liminar foi revogada. Ao tentar acessar o sistema acadêmico, a estudante descobriu que seus dados haviam sido apagados, e sua matrícula, cancelada.

Avaliação por aparência: como funciona o sistema

O caso reacende o debate sobre os critérios adotados nos processos de heteroidentificação, que visam impedir fraudes em políticas de ações afirmativas. Universidades públicas brasileiras podem adotar dois modelos de verificação: aceitar apenas a autodeclaração ou contar com comitês presenciais ou virtuais que analisam os traços físicos dos candidatos.

Na UFF, o processo é remoto. O edital exige que o estudante envie um vídeo curto, com fundo neutro e boa iluminação, em que declara sua identidade racial e mostra o rosto de frente e de perfil. Foi com base nesse vídeo — de apenas 17 segundos — que o comitê rejeitou a autodeclaração de Samille. Mesmo após novo recurso, envio de fotos de infância e documentos de cotas de cursos anteriores, a resposta da universidade permaneceu negativa.

As bancas de heteroidentificação seguem diretrizes que priorizam exclusivamente os traços fenotípicos — como cor da pele, tipo de cabelo, formato de nariz e boca — desconsiderando genealogia ou experiências pessoais de discriminação. A prática é respaldada por decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) e por normas do Ministério da Gestão, que definem esse critério como padrão também para concursos públicos.

O procedimento, no entanto, tem sido alvo de críticas pela subjetividade e margem para erros. A avaliação da UFF foi realizada à distância, e nenhum membro do comitê teve contato presencial com a estudante. Na tentativa de provar sua identidade racial e manter a vaga na universidade, Samille foi orientada a buscar uma avaliação técnica. Um antropólogo analisou traços físicos como o formato do nariz, lábios e até mesmo o crânio da estudante."Mediram meu crânio para tentar provar que eu era parda."

Apesar do laudo apontar a presença de características fenotípicas afrodescendentes, o documento não foi suficiente para convencer a Justiça nem a universidade.

Impactos pessoais e nova tentativa

A estudante afirma que a decisão abalou profundamente sua identidade. Após anos se reconhecendo como parda e enfrentando episódios de racismo, relata agora sentimentos de vergonha, insegurança e medo de ser vista como uma “impostora”.

Apesar do trauma, ela diz não ter desistido. Enquanto aguarda uma definição judicial, voltou a se preparar para o Enem e reafirma seu desejo de seguir na Medicina. “Não é só um curso, é meu propósito de vida”, afirma.

Políticas de cotas em xeque

O caso de Samille expõe as fragilidades operacionais dos comitês de heteroidentificação, sobretudo quando realizados remotamente. Embora reconhecidas como fundamentais para garantir justiça social e combater fraudes, essas ferramentas precisam de estrutura adequada e tempo para avaliar com precisão e humanidade cada caso.

O processo segue em tramitação nas instâncias superiores, e a estudante ainda aguarda por justiça.

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