Costuma-se dizer, à maneira de axioma indiscutível, que sem dúvida sistemática não existe verdadeira filosofia, de tal modo que o verdadeiro filósofo deve se despir de toda e qualquer certeza primeira, para só então começar a raciocinar em termos filosóficos. Não concordo com isso. É claro a dúvida sistemática e o senso crítico que a alimenta são características de um ser humano plenamente racional. Ou seja, do homem ou da mulher adultos, ou pelo menos suficientemente amadurecidos, para exercerem validamente essa crítica. Mas não se pode negar a existência e a necessidade de algumas certezas primeiras.
Na infância, e sobretudo na tenra infância, o conhecimento é adquirido praticamente sem críticas, sem dúvidas. Para a criança, tudo quanto vê e apreende lhe parece natural. Só mais tarde ela aprenderá a fazer comparações, julgamentos, censuras. Se a dúvida sistemática é indissociável do pensamento filosófico e a criança é incapaz de duvidar sistematicamente, conclui-se que a criança é incapaz de qualquer filosofia. Será mesmo?
Parece-me que não, porque muitas vezes vemos crianças formularem verdades filosóficas espantosamente verdadeiras, com uma precisão e beleza que nós, adultos, desejaríamos possuir e não mais possuímos. Elas não duvidam nem questionam, tudo nelas é certeza, e no entanto elas pensam, raciocinam e por vezes chegam a conclusões que nós, adultos, não seríamos capazes de formular. Então, eu pergunto: a dúvida universal e sistemática será mesmo conditio sine qua non para o pensamento filosófico? Será realmente indispensável se despir de toda e qualquer certeza, para somente então se adotar uma "atitude filosófica"?
Quando Sócrates dizia “só sei que nada sei”, com essa afirmação ele não estava enunciando uma certeza? Quando Santo Agostinho, São Tomás de Aquino, Karl Marx e tantos outros raciocinaram a partir de premissas que tomaram como certas, estavam agindo antifilosoficamente? Será verdade absoluta a afirmação de que não existem verdades absolutas?
A dúvida sistemática como requisito básico para o pensamento filosófico é geralmente aceita, a partir de Descartes. E é essa dúvida sistemática, afirmada com tanta segurança, que me deixa muitas dúvidas no espírito... Sou mais tendente a afirmar que sem algumas certezas fundamentais não se sustenta todo o mecanismo do sistema filosófico.
Concordo inteiramente com a ideia de Gramsci, de que todos, de certa forma, somos filósofos. Vou mais longe, e acho que isso se dá inclusive com as crianças - e talvez até de modo paradigmático. De fato, é entre crianças que, às vezes, nos surpreendemos com a profundidade do pensamento filosófico latente em manifestações ingênuas. E são crianças que ainda não têm senso crítico, nada questionam, de nada duvidam. Seu mundo é só de certezas, e de certezas evidentes.
O pai é um herói, a mãe é uma fada, a “tia” da escolinha é um poço de ciência que tudo sabe etc. etc. De onde vem essa segurança, de onde vêm as certezas do espírito infantil? Quais são as matrizes primeiras do seu pensamento, de onde procedem elas?
É incrível a profundidade da sabedoria infantil! Será que esse tesouro não faz parte da filosofia, só porque não assume, habitualmente, a forma interrogativa e questionadora daquilo que adultos convencionaram considerar como indissociável da atitude filosófica? Sinceramente, não sei responder com certeza, mas sou tendente a achar que as crianças têm matrizes de espírito filosófico muito autênticas e profundas, as quais nós, adultos, numa falsa maturação de espírito geralmente aprendemos a desaprender. O diferencial de grandes espíritos é justamente que conservaram em si algo de espírito infantil. É isso que os torna superiores à mediania e à mediocridade.
Meu saudoso e brilhante amigo Paulo Bomfim se definiu, num poema, como um menino que esqueceu de crescer. Fui também muito amigo do saudoso penalista Dr. Damásio de Jesus. Recordo que ele, já septuagenário, foi à Disneylândia com suas cinco netas, que na época eram pequenas. Enquanto viajavam, ele foi, dia a dia, no seu blog, transmitindo os comentários que as meninas faziam. Foi uma coisa encantadora. No final, ele publicou um artigo muito profundo, sobre a sabedoria das crianças e sobre os lados infantis dos adultos.
Armando Alexandre dos Santos é doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Piracicabana de Letras e do IHGP.