ARTIGO

E quem se liberta de mãe?

Por Cecílio Elias Netto |
| Tempo de leitura: 3 min

Começou em certa manhã de frio e preguiça. Ele passou a mão pelo rosto, decidiu: “Hoje, não vou fazer a barba.” Quase de imediato, porém, a voz imortal advertiu-o: “Filho, o coração é seu, mas o rosto é dos outros. Vá barbear-se”. E ele obedeceu. Sem reclamar.

Admitamos: para alguns homens, é incomodante ouvir mulher queixar-se de desigualdade de gênero. Obviamente, nas relações sociais, de trabalho isso existe.

Mas, nas conjugais, familiares... Dio mio! A mulher manda em tudo, é dona de tudo e o homem que se cuide. Pelo menos, é experiência própria.

Para citar coisinha só: quem se liberta de mãe? Na adolescência, até que, bobinhos, acreditam nisso. Fugir de casa, xingar, desrespeitar, “quem manda em mim sou eu”! Passando-se um tempo, chega o namoro. O bichinho gaba-se diante da amada: “Sua mãe não faz bolo igual ao da minha”. E orgulhoso ainda mais: “Um dia, você vai conhecer minha mãe e ver que mulher ela é!” Do pai, pouco se fala: “Ele até que é bonzinho. Mas quando fica bravo...”

A sabedoria popular consagrou a realidade: “mãe é mãe”. E acabou a conversa. Até o finzinho da vida deles, ela é presente na existência dos filhos. Vai daí, a tal superioridade masculina não passar de grande farsa. Digo-o por mim, outros que falem por si mesmos: o homem é dependente da mulher. Nem sequer se diga de interdependência. Dentro de casa, é dependente!

Submissos, começamos no ventre da mamãe. Por nove meses. Saindo daquele aconchego, recebemos o primeiro banho. Pelas mãos de mulher. Berrando, esganiçando, somos levados, limpinhos, a quem nos pariu. Ela agasalha, abraça, dá calor e – outro milagre!  – dos seios dela corre o leite precioso, primeiro alimento do nascituro. Leite de mulher. E começa a jornada do bebezinho.

Ele faz xixi, cocô, a mãezinha limpa-o, troca as fraldinhas, dá beijinhos, canta. A mulher ensina-o a engatinhar. Depois, acompanha-lhe os primeiros passinhos trôpegos. E dá-lhe comidinha na boca: “Come mais, amorzinho da mamãe”. Carrega-o nos braços carinhosos, canta: “Nana nenê, a cuca (não) vai pegar...” Coloca-o no bercinho. Vela por ele. Sem sequer cochilar. Se cochila, desperta rápido, assustada. Apalpa o filhote para ver se respira. Faz uma oração silenciosa mesmo mal se lembrando de como ou para quem orar.

Então, o rebento começa a crescer. Brinca com amiguinhos, grita, briga, apanha, sai correndo: “Mãe, ele bateu ni mim!” A doce mãezinha toma-se de fúria: “Eu mato quem mexer com você!” E o filho agarra-se em suas pernas, chorando. Alguns aninhos depois, a amorável criança inquieta-se com suas questões, vai até o homem: “Paiê, de onde eu vim? Como eu nasci?“ E o pai, confuso: “Vá, vai perguntar pra sua mãe. Ela explica”.

Tendo sorte, a pessoinha amadurece, casa-se, tem filhos, educa-os, vê-os seguindo pela vida. Ganha netos, aposenta-se. Então, já idoso, tenta acreditar: “Agora, estou livre. Não tenho mais compromissos.” Delicia-se à expectativa do almejado “otium cum dignitate”.  Mas...

...coisas acontecem. Em dia frio demais, o velhote decide não se banhar: “Só hoje, que mal faz?” Então, uma voz brada das funduras da existência: “Menino, já pro banho!” Ele obedece, banha-se. A voz adverte: “Lavou bem atrás das orelhas?” Às refeições, homem feito, dono de si mesmo, quer conversar. Mas, ainda vindo do infinito, ouve: “Filho, não fale enquanto estiver comendo.” Ou: “Não ponha os cotovelos na mesa”. E sempre: “Coma devagar, mastigue bem, de boca fechada.” É a mamãe, que não foi embora.

Como, pois, libertar-se dela? E, no entanto, que bênção poder tê-la sempre viva em nós! “Deo gratia”.

Cecílio Elias Netto é jornalista e escritor.

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