Na teoria do ciclo do mundo, há a convicção de – após esgotada uma realidade – voltar-se, ele, ao princípio. Daí, o eterno retorno que seduz pensadores e cientistas. Haveria, então, o caos e, em seguida, a reconstrução. Tudo aconteceria à semelhança dos ciclos já conhecidos: o dia e a noite, primavera e verão, outono e inverno. Um mundo novo, pois, surgiria após o término do que o precedeu.
Uma das previsões – ou simples desejo dos ancestrais – revela a ansiedade poética que nos acompanha desde a Antiguidade: “Crer-se-á nas mesmas coisas, os mesmos assuntos serão discutidos e cada cidade, aldeia e campo também retornarão.” E isso aconteceria simplesmente por ser “o sim que o mundo diz a si mesmo”. Ou seja: o mundo, ele próprio, reconhece-se bendito.
Portanto, “cada cidade também retornará”. Tratar-se-ia, então – após transformações e mudanças – do reencontro de si mesma. Ou haverá quem, ainda, não se dê conta de Piracicaba estar, novamente, num crescimento acelerado? “Et pour cause”, também preocupante? Pois, nem todo crescer significa desenvolvimento, progresso. Em não havendo harmonia entre as partes do todo, este se desfigura. Cidades são entidades vivas. Se têm um corpo físico – sua realidade material – possuem, também, alma, um espírito próprio.
E, talvez, o que tenha faltado a muitos dos homens públicos seja, exatamente, esse ignorar a alma das cidades. Insiste-se em apenas cuidar-lhes dos corpos. Entre os meus tantos temores, um deles está no esquecer de quem somos. Pois, a velocidade dos acontecimentos, das realizações tecnológicas conduzem-nos à busca de acompanharmos-lhes o ritmo. A velocidade, porém, atropela a profundidade. Corre-se e nem sempre se sabe para onde. Sem cautela, sem sabedoria, as transições podem ser deletérias. O preço da correria acaba por sair mais caro.
Antes mesmo de quando, aqui, Almeida Júnior foi assassinado, somos uma cidade fermentada pela cultura também às mais belas artes. Todas elas. Pintores, músicos, escultores, poetas, literatos, artistas que, ainda, pontificaram na dança e no cinema – não há, neste espaço, como cantá-los. Até a muros do cemitério, nossos artistas levaram a beleza. Trata-se, pois, de uma privilegiada vocação, de herança invulgar. Herdeiros de tal riqueza, seremos indignos dela se não a dignificarmos. E essa alma permanece conosco, mesmo agora, época de materialismos já insuportáveis.
Por que não levar música verdadeira, revigorante às nossas áreas comerciais? Por que não criarmos uma adorável competição para, em nossos quarteirões, tornarmos casas com cores em nossos quarteiros? E, se cada bairro, se empolgasse por esse campeonato de beleza? Por que não começar pela Rua do Porto, escandalosamente ameaçada por apetites preferencialmente comerciais? Permito-me, porém, fazer uma dolorosa, imensamente triste confissão: não mais vou à Rua do Porto, o lugar que tanto me inspirou ao longo da vida, um dos templos de nossa cidade. Pobrezinha, pobrezinha, ela – uma das musas de nossas artes – sendo violentada por um turismo sem regras. Desprotegida, abusada, sem a vigilância de quem se espera a proteção de nossos valores.
Ah! como precisamos assumir a imortal certeza popularizada por Dostoievsky: “A beleza salvará o mundo”. Ah! se as famílias assumissem que cada rua onde moramos faz parte de nossos próprios lares. Como urge fazermos opções totalizantes! Como urge voltar a entender que o corpo de uma cidade também tem alma!
Pois, como já se disse, há um espírito em nosso lugar abençoado. E, nele, não se deve dar pérolas a porcos.
Cecílio Elias Netto é jornalista e escritor.