
Foi assim, simples e direto, que alguém disse na televisão: “Se está caro, não compre”. Na teoria, soa como uma lição de economia popular. Na prática, soa mais como deboche. Afinal, quem pode se dar ao luxo de não comprar arroz, feijão ou remédio quando o preço dispara? "Isso não se faz, Arnesto... nois não se importa, mas não venha bater outra vez em nossa porta"!
Esse raciocínio, à primeira vista, parece lógico. Funciona quando se fala de supérfluos do celular de última geração, do carro do ano ou daquela viagem internacional. Mas quem vive na realidade do básico sabe que essa lógica não se sustenta no prato vazio.
A ideia de caro ou barato nasce da comparação. Comparação com quê? Com a renda, com o tempo, com a necessidade. O que é barato para uns é inacessível para outros. E aqui entra a diferença crucial entre valor e preço. O preço é um número, uma etiqueta. O valor, não. Valor é subjetivo, moldado pela utilidade, pelo desejo, pela urgência, pelo contexto.
Um quilo de ouro tem preço altíssimo na bolsa. Mas tente beber ouro no deserto, sob 50 graus, sem um pingo de água. Nesse cenário, um litro de água vale mais que qualquer barra dourada. O preço é uma construção econômica. O valor é uma construção humana, circunstancial e vital.
Quando se diz que “o preço é questão de oportunidade”, acerta-se em cheio. O mercado ajusta preços com base na oferta, na demanda e, muitas vezes, na especulação. Mas o valor flutua conforme o tempo e o espaço. Uma vela vale pouco numa cidade iluminada, mas salva vidas num apagão. Um guarda-chuva custa pouco num dia de sol, mas vira ouro na chuva.
A frase “se está caro, não compre” parece sensata num manual de finanças, mas não na vida real de quem precisa. Deixar de comprar pode até ser uma escolha racional diante de um item de luxo. Mas, diante da comida, da saúde e da dignidade, não comprar não é opção é tragédia.
Quando muitos deixam de comprar, rompe-se a engrenagem da cadeia produtiva. A demanda cai, a oferta encalha, os preços oscilam. A retração se retroalimenta.
No entanto, essa reação só é possível para quem tem poder de escolha e a maioria não tem. Na fome, não há barganha. E pensar que "a barganha veio antes da moeda" só acentua o quanto a lógica do mercado se distancia da lógica da sobrevivência.
O mais cruel dessa máxima é sua contradição: Se está barato e não é necessário, também não se compra. Isso revela que consumo não é só sobre preço, mas sobre sentido, sobre necessidade, sobre desejo real.
Portanto, jogar a responsabilidade no colo do consumidor como quem diz “não compre e o preço cai” é esconder a mão que regula, manipula e concentra os ganhos. No campo da alimentação, da moradia e da saúde, esse discurso é quase criminoso. E soa como deboche, sim. Porque, no fundo, quem o diz sabe que, para o pobre, o não comprar não é estratégia é impotência.
A saída? Não está no silêncio do consumidor, mas na organização dele. Está na política pública, na regulação de mercado, na produção local, nos incentivos corretos, na consciência coletiva. Está em entender que sem poder de barganha, não há negociação possível. E sem justiça econômica, não há escolha só resignação.
Por isso, quando alguém repetir “se está caro, não compre”, talvez seja hora de responder como naquela velha música: “Isso não se faz, Arnesto...”. E bater na porta certa, a da responsabilidade social não a do vizinho que, como nós, também está só tentando sobreviver.
Walter Naime é arquiteto-urbanista e empresário.