
Por efeito da rapidez vertiginosa com que se sucedem os acontecimentos e se processam as informações na vida atual, muito rapidamente são esquecidos acontecimentos de um passado bem recente. Em matéria de tecnologia, por exemplo, é incrível como coisas que há 15 ou 20 anos eram novidades “de ponta” e atraíam todas as atenções, hoje não passam de reminiscências de um remoto passado.
A internet é fenômeno recentíssimo na história da Humanidade, mas sem embargo disso já possui sucessivas camadas dessas novidades (para não falar dessas modas...) superadas e sepultadas no esquecimento.
Pertenci a uma comunidade, no quase pré-histórico Orkut, de aficionados por máquinas fotográficas da tradicional empresa alemã Carl Zeiss. Para os fotógrafos exigentes (e estes são, infelizmente, cada vez mais uma minoria, se bem que ainda se encontrem com relativa facilidade), uma câmera Zeiss assinala um patamar de excelência, sobretudo pela alta qualidade da sua ótica.
Desde princípios do século XIX, a fábrica Carl Zeiss, sediada em Iena, produzia os melhores microscópios de precisão do mundo, os quais começaram sendo fornecidos para a prestigiosa Universidade de Iena, e depois passaram a ser os preferidos pelos laboratórios de toda a Europa e das Américas.
Herr Zeiss, o fundador da empresa, costumava levar à cintura um martelo, e quando um microscópio produzido na fábrica não passava por seu severíssimo controle de qualidade, não o consertava nem corrigia o defeito, por mais insignificante que fosse. Mas, por uma questão de princípio, esmigalhava o aparelho a marteladas, na frente de todos os empregados, para que todos aprendessem que só coisas perfeitas poderiam ser colocadas no mercado com a marca Carl Zeiss. Esse martelo se tornou legendário, símbolo da altíssima qualidade dos produtos da empresa.
Mais tarde, a Zeiss se lançou no mercado de máquinas fotográficas e se tornou uma das maiores produtoras mundiais. Suas câmeras, as Zeiss Ikon, sempre de mecânica avançadíssima para a época e de ótica perfeita, durante quase um século competiram com as produzidas pela sua grande rival, a Leitz, fabricante da famosíssima e glamurosa Leica.
Na década de 1930, o físico holandês Dr. Fritz Zernike (1888-1966), durante um estágio que fez na Zeiss, propôs a fabricação de um novo tipo de microscópio de contraste de fase, mas os técnicos da empresa rejeitaram o projeto, dizendo que, se fosse prático, já teriam pensado nele antes e a empresa já o estaria realizando. Zernike prosseguiu, sem ajuda da Zeiss, o desenvolvimento do seu projeto, e graças a ele conquistou, em 1953, o Prêmio Nobel da Física.
Quanto à Zeiss, foi pouco a pouco decaindo, por não saber se adaptar aos tempos novos. Continuou a fabricar máquinas fotográficas de altíssima qualidade até 1972, quando parou de fabricá-las por não poder concorrer com as japonesas, muito mais baratas e acessíveis a um público menos exigente. A Leitz continuou, e ainda hoje continua a produzir as melhores câmeras do mundo, a preços muito mais elevados do que os das japonesas, para um público fiel menor, muito exigente e que não discute preços. Nesse nível, as Leica continuam imbatíveis.
Esse público especial, a Zeiss teria podido disputar com a Leitz em igualdade de condições, mas não quis fazê-lo. Preferiu continuar teimando em produzir câmeras muito superiores e mais caras do que as japonesas, mas disputando o mesmo público de nível médio das japonesas - um público que não tinha condições de compreender nem de pagar o produto superior. Acabou tendo que fechar melancolicamente as portas de sua fábrica de máquinas. Ainda existe a empresa, produzindo lentes e vendendo-as aos japoneses, mas não dá nem uma pálida ideia do que foi no passado. Por quê? Porque seu apego às rotinas consagradas a impediu de se adaptar às necessidades dos novos tempos.
Em tempo: possuo uma câmera Contaflex-S produzidas pela Zeiss, no ano mesmo em que cerrou suas portas, ou seja, 1972. Pela numeração, sei que é das últimas fabricadas. Está em perfeitas condições de funcionamento. Possuo também um velho binóculo da Zeiss, produzido há mais de 100 anos. Está igualmente impecável, com ótica admirável, com uma nitidez e uma fidelidade de imagem espantosas.
Armando Alexandre dos Santos é doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Piracicabana de Letras e do IHGP.