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A luta de uma cerimonialista negra contra o racismo

Por André Thieful |
| Tempo de leitura: 9 min
Will Baldine/JP

A luta contra o racismo e as diversas formas de discriminação ainda são desafios  na sociedade brasileira. Para a cerimonialista negra Soraia Martins, de 41 anos, que atua no mercado de eventos, esses obstáculos se manifestam de maneiras explícitas e veladas, impactando tanto sua vida pessoal quanto profissional. Ao JP ela conta experiências, como um caso recente de racismo envolvendo uma cliente. Ela também analisa os desafios enfrentados pelas pessoas afrodescendentes no Brasil e destaca a importância da educação e da representatividade no combate às desigualdades.

Sobre o caso publicado em novembro, como você recebeu a notícia sobre o comentário de uma noiva que disse preferir ‘um time de pessoas brancas’ e qual foi sua reação inicial?

Encontrei a celebrante Aline em uma lanchonete e estávamos conversando sobre o universo de eventos, o preconceito de uma forma geral, homofobia, racismo, etc, e na conversa ela me contou, o caso dessa noiva que e que ela havia rompido o contrato com ela por conta disso. Naquele momento imediato, achei absurdo, mas não externei pra ela, o tanto que aquilo mexeu internamente comigo, mas depois fiquei refletindo sobre a situação, sobre a postura da Aline e de como não ser mais passiva diante de atos racistas, então comecei a querer saber se os amigos pretos do segmento passavam por algo semelhante e como eles se sentiam, e conversei com um, com outro e descobri que todos nos acostumamos com tais atitudes, somos passivos nas situações vivenciadas, fingimos não ver, relevamos, enfim, normalizamos o racismo. Acabamos criando um grupo no whats, para fazer algo no dia 20 de novembro que estava próximo, com intenção de evidenciar nossa competência, nossa existência, nosso trabalho e mostrar que “somos mais, somos mais, mais que essa pele marrom…bem mais amor”, como cita a música ouro marrom.

Como se sentiu ao saber que a empresária que a indicou rompeu o contrato em solidariedade a você?

Eu achei de uma dignidade, de uma humanidade grandiosa demais, que só pessoas evoluídas e desapegadas podem ter. É o ganha pão dela, e mesmo assim, ela abriu mão para defender uma causa, para manter seus princípios e valores. Abriu mão mesmo recebendo em troca um processo por quebra contratual, que graças a Deus e a justiça foi considerado improcedente e cancelado.

Quais ações legais você tomou em relação a esse caso de discriminação?

Eu diretamente não pude fazer nada ainda, pois a Aline por orientação jurídica, está mantendo a identidade da noiva em sigilo, então não consigo denunciar o ato racista, mas a Aline abriu um processo de racismo contra a noiva, o qual está em curso e aguarda julgamento.

Este foi o primeiro caso de racismo que você enfrentou na sua atuação como cerimonialista? Como esse episódio impactou sua vida profissional?

De forma explícita sim, mas não duvido que outras possíveis clientes, nem tenham me acionado ao ver minha foto no WhatsApp, a diferença é que não fiquei sabendo. Não sei se posso afirmar que houve e um impacto profissional, acho que meu rosto se tornou conhecido devido a toda repercussão, mas o que eu posso afirmar é que houve um impacto social, positivo porque as pessoas se solidarizaram com a questão de ser antiracista, compartilharam o assunto, se posicionaram e infelizmente negativo também, porque muitos ainda não se conscientizaram sobre o racismo e normalizam atitudes como essa.

Você já mencionou outras situações de racismo que viveu, como na escola e no ambiente de trabalho. Como esses episódios moldaram sua perspectiva sobre o combate ao racismo?

Confesso que por muito tempo fui passiva em relação a isso, mas enxergar que a minha perspectiva de uma vida melhor, para minha filha principalmente, está atrelada ao futuro e as possibilidades que ele me oferece e que me é restrita ou negada, pelo fato da minha cor, me fez entender que essa luta não pode ser só dos meus ancestrais, e de outros conhecidos que vejo nesse combate. É necessário que eu também a incorpore.

Você sente que o racismo estrutural dificulta sua atuação profissional no mercado de eventos? De que forma?

Não sinto na atuação, porque as pessoas que efetivamente me contratam, me aceitaram na coordenação do seu evento e me tratam com o devido respeito. O que se repete estruturalmente, no cenário dos eventos, é a falta de oportunidade, de acesso, pois racistas como essa noiva, as restringem, assim como o sistema que não inclui, não tem representatividade expressiva e põe em cheque nossa competência e a nossa intelectualidade pela cor da nossa pele.

Na sua opinião, por que a aplicação da lei para casos de racismo ainda é tão ineficaz no Brasil?

Nossa sociedade foi construída em cima de leis que tornaram o negro sempre criminoso, desvalorizaram nossa humanidade e com isso, não há uma preocupação consistente em se aplicar a lei. A aplicabilidade da lei ainda é muito rasa. Acho também que a maioria das vítimas não denunciam, por medo, pela sensacão de impunidade e porque o preto se acostumou a normalizar as atitudes racistas. A lentidão do sistema é desanimadora. Eu tentei pesquisar números de condenações x número denúncias. São raros os casos já julgados e julgados com condenações, porque algumas causas não são vistas com gravidade pelos próprios agentes judiciários.

O que você acredita que seria necessário para que o racismo deixasse de ser algo tão presente no dia a dia dos brasileiros?

A base é a educação. O tema racismo não pode ser tratado só no mês de novembro, tem que ser uma pauta contínua. Eu acredito que o pensamento racista adulto é muito difícil desconstruir, então temos que reforçar o tema antirracista. Disseminar a educação antirracista pra sociedade e implantar na educação desde a infância. A gente percebe que os racistas, eles não entendem e não absorveram a história, o impacto que a escravidão causou na sociedade. Então é necessário inserir o letramento racial, a história tal como ela é, precisa estar presente nas escolas, precisam contar sobre a nossa cultura, precisam contar sobre os heróis negros que não aparecem nos contos de fadas, não são mencionados nos fatos históricos e em canto nenhum. Como é que falamos de inclusão do negro, se só somos apresentados como escravos? Cadê a história dos reis e rainhas negros? A gente só existe a partir da escravidão, cadê o resto da nossa história? Como é que vamos tratar a diversidade, com as crianças se elas olham ao redor e dá pra contar quantos colegas pretos estão ali estudando com elas.

Você falou sobre a importância da educação no combate ao racismo. Como acredita que a educação pode ajudar a desconstruir o racismo estrutural?

Você lembra daquela frase se você pode ensinar a odiar, você pode ensinar a amar. É na infância que aprendemos sobre respeito, sobre comportamentos, sobre se relacionar, sobre enxergar o outro. Além disso, a lei 10639 de 2003 coloca como obrigatório o ensino da história e cultura do povo africano aqui no Brasil. A escola tem papel fundamental nessa construção, óbvio que, juntamente, com a família. Mas a educação consegue moldar e cultivar muito as atitudes positivas. O ensino sobre o povo africano aparece nos livros de história somente a partir da violência da escravidão e, ainda assim, ensinam de uma maneira tão superficial que legitima aquele genocídio como se não fosse nada anormal escravizar um povo. Isso manteve essa relação que as pessoas têm de que o negro é inferior e subalterno, é coisa, não gente. As crianças cresceram e crescem em cima desse letramento. Reverter isso nas escolas desde a primeira infância, é crucial. Ensinar que antes do crime da escravização, os negros têm sua cultura, fé, história, conhecimentos, há matemáticos, cientistas, rainhas e reis na África antes da escravidão! Ensinar isso do modo correto nas escolas faz com que as crianças pretas, desde as mais pequenininhas possam se projetar em um lugar de empoderamento, de capacidade e as crianças brancas crescerão sem reproduzir essa imagem deformada que foi criada sobre a pessoa negra, sua capacidade e seu valor. Por isso a educação antirracista e o ensino de África é urgente nas escolas. O problema é que ainda é mínimo o número de escolas, principalmente as infantis que trazem essa abordagem como urgência em seu currículo.

Que tipo de ações você considera essenciais para combater o racismo velado no Brasil?

Coragem pra denunciar, que é difícil porque temos racistas violentos por aí, mas precisamos pra que a luta dos nossos ancestrais seja validada. - Instruir e incluir como já citei anteriormente. Dar representatividade ao preto em lugares de destaque na sociedade e não só mostrá-los nas cadeias, na marginalidade. Quando começarem a naturalizar esse olhar de que o preto pode preencher os mesmos espaços que são preenchidos pela maioria branca, talvez, tenhamos mudanças, ainda que pequenas, mas movimentos necessários para esse combate. Porque os racistas podem até fingir que não nos veem, mas nós existimos e continuaremos resistindo firmes nessa luta.

O que te motiva a continuar empreendendo e seguindo sua carreira, mesmo enfrentando episódios de racismo?

Saber que meus ancestrais lutaram para que eu fosse livre, tivesse direitos garantidos e fosse digna de respeito. Ver que minha mãe lutou para que eu tivesse melhores oportunidades e me projetasse onde eu quisesse e não me bastasse só na função de subalterna, que é onde a maioria dos negros estão representados. Eu quero que minha filha enxergue, essa mesma força e garra em mim e que ela consiga se enxergar em qualquer profissão que ela almeje sem se preocupar com a distinção pela cor da sua pele. É saber que posso inspirar outras mulheres pretas a serem também protagonistas da sua própria história.

Como você se mantém forte diante dessas situações? Existe alguma rede de apoio que te ajuda nesses momentos?

A força vem da indignação dos absurdos que vivenciamos. A gente quer mudar o cenário, então se mantém firme e lutando. Graças a Deus tenho muitas pessoas que me apoiam e com quem sei que posso contar. Mas especificamente, eu tenho um grupo de amigas (as luluzinhas), onde a gente se apoia em tudo, uma sente a dor da outra, e nos apoiamos nas diversas circunstâncias da vida. Elas são minha rede de apoio oficial.

Como sua atuação como mulher negra tem ajudado a inspirar outras pessoas a enfrentarem o racismo?

Não sei se sou inspiração, mas sei tenho que ir a luta e não posso parar. Sou iniciante e quero aprender com tantas outras mulheres pretas que são resistência. Posso dizer que iniciei uma graduação e estou sedenta pela aprendizagem.

Que mensagem você gostaria de deixar para outras mulheres negras que enfrentam situações similares e para as pessoas que buscam ser aliadas no combate ao racismo?

Tem uma frase em um livro da escritora Conceição Evaristo que diz: “Combinaram de nos matar, a gente combinou de não morrer” que resume o que não só eu, mas todas as pessoas pretas em todos os âmbitos: profissional, estudante, mulher, homem, pretos, vulnerável... Temos nessa frase um compromisso silencioso em nos manter vivos! Vivos em nossos sonhos e em nossa capacidade de realizá-los. É isso que quero deixar. Não se dobrem, não se calem! Temos um pacto silencioso: combinamos de não morrer!

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