ARTIGO

A câmera, essa estranha


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Por mais de uma década circularam pela internet trechos de um documentário feito pela Independencia Film, expondo Piracicaba durante as comemorações do centenário da Independência, em 1922. Os trechos mostravam um Arco do Triunfo reproduzido ao final da rua Boa Morte, próximo a Estação da Paulista, um grupo de escoteiros partindo por um comboio que passa pela rua Benjamin Constant, ou pessoas realizando o “footing” na praça José Bonifácio.
No último dia 21, o Teatro Erotides de Campos, no Engenho Central, teve lotação total para assistir ao filme completo e restaurado pela Urgência Films. Foram 1h30 de um celuloide muito bem recuperado com efeitos sonoros e música ao vivo.

A obra merece atenção de estudiosos e de todos os piracicabanos que amam a cidade. Traz algumas curiosidades, entre elas mostra que existe preocupação maior do que aquela que se tornou um estigma local: a demolição do Hotel Central. Houve muitos prédios imponentes que sumiram com o passar do tempo que nos deixam boquiabertos e saber que os perdemos em prol da melhoria urbanística da cidade. A plateia riu quando, Piracicaba então com 50 mil habitantes, passou a conhecer uma obra pública denominada de “Avenida da Independência” que vai de um dos trechos do Ribeirão do Itapeva na avenida Armando de Salles Oliveira e se finda próximo a Esalq. Os risos não foram por isso. É que do local em que Piracicaba foi mostrada – talvez próximo a rua XV de Novembro – tal ponto da Avenida Independência era um mato só, algo que hoje só vemos na zona rural.

A Independencia Film foi a empresa paulista contratada pela Comissão Organizadora do Centenário da Independência Brasileira para filmar o estado de São Paulo. A empresa pertencia o reconhecido Menotti del Picchia e seu irmão José del Picchia e Armando Pamplona. Sua equipe aporta em Piracicaba e grava cenas icônicas como o rio, a Esalq, o Cemitério da Saudade, a praça Sete de Setembro, a Estação da Paulista, a Ponte Irmãos Rebouças e mais. O objetivo era ganhar dinheiro, papel principal da indústria de entretenimento cinematográfica. Exibir o documentário na cidade e em outras como atrativo para um país que estava em crescimento. Em 1922, ano que o documentário foi apresentado, o cinema ainda era mudo. Mas, com toda certeza, piracicabanos e piracicabanas queriam se ver na telona. É possível identificar Fernando Febeliano da Costa e o Padre (depois Monsenhor) Rosa, entre outros.

Curioso é ver trechos rápidos como a partida entre o XV de Novembro e o Guarani. Era um time ainda em formação. O alvinegro estava prestes a chegar aos seus nove anos de formação. Na plateia, grande maioria de terno, numa cidade considerada quente demais, e alguns com guarda-chuvas fazendo dele a vez de sombrinha para diminuir o poder do sol. Nas imagens dá para se ver a arquibancada meio metro da lateral do estádio. Muito ouvi falar que no Gomes Pedrosa dava para dar facilmente um tapa na orelha do juiz auxiliar.

Piracicaba sempre foi uma cidade acolhedora e com coração quente. Diz, mais ou menos o documentário. Assim é registrado ao final de uma das missas na Matriz de Santo Antonio, quando, para as filmagens, a mendicância é apresentada com imagens e legendas. O mendigo que ficou sentado à direita da porta nunca recebeu tanta esmola em dinheiro como desta vez durante a filmagem. Não entendam essas linhas como ironia ou outra coisa qualquer, mas é curioso ver como Piracicaba e seu povo eram 102 anos atrás. Uma cidade curiosa com ruas largas feitas para pessoas andarem, já que são poucos os veículos que vemos nas cenas. Crianças de manga cumprida, muitas com coletes ou blazers. A elegância toma conta no celuloide preto e branco restaurado com a qualidade 4K divididos em colorizações como a sépia.

Curioso é ver o comércio local como a empresa de pastifícios Fábrica de Macarrão Emílio Bertozzi & Co., com suas massas sendo secadas ao sol ou suas tiras tendo armazenadas sem os cuidados atuais como o uso de gorro ou luva. Piracicaba também teve seu biotônico anunciado como Biogol fabricado pela Phamacia Faria, do farmacêutico Ernani Braga. As cenas mostram o interior da farmácia e mais para frente é possível ver publicidade do produto no alto do bonde da Esalq.
Interessante é ver as pessoas se depararem com a câmera. Ninguém teve seu mise-en--scène e é comum alguém dando um tchau para a tela, uma jovem enrubescer na praça ou o guia que passeia pelo salto do rio gesticular para onde ele deveria ir. Era algo novo: uma câmera filmadora, essa estranha e desconhecida máquina.

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