ARTIGO

“...dar-se-á tudo nela pelas águas que tem”


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Muito já pensei na magistral carta de Pero Vaz de Caminha, que narrou o princípio dessa história sem fim. E maravilhosa. Os portugueses, encontrando o paraíso, deram-lhe o nome católico de Terra da Santa Cruz. Confesso sempre emocionar-me ao reler aquela carta. No entanto, passei quase a crer carregue, tal documento, como que certa maldição. Pois Caminha, em seu deslumbramento, já sugere aproveitar-se dela. Textualmente: “Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa (a terra) que, querendo-a aproveitar, dar-se-á tudo nela, por bem das águas que tem.”
    Ai de mim, quanto amei este país! E quanto, ainda, o amo. Mas, agora, com tristeza imensa, amargada pela desesperança de poder vê-lo dignificado por aquilo que é. E não mais espoliado por gerações de canalhas que o assaltam. A grandeza é tal que, sugado por mais de 500 anos, o Brasil permanece “impávido, colosso”. Ou seja: intrépido, destemido, corajoso. Ainda que possa parecer “deitado eternamente em berço esplêndido”. 
    Mas algo fundamental penso ter, finalmente, entendido. Nada é nosso. Nada nos pertence. Hemos que nos ver como inquilinos, talvez apenas condôminos. Ou, mais certamente, como privilegiados moradores temporários, a quem caberia muito mais extasiar-se com tal bem-aventurança do que se acreditarem proprietários dela. A vida seria algo profundamente pérfido se aceitássemos como justo o absurdo de, por termos nascido antes, tornarmo-nos donos de tudo o que já existia. Deixar de herança o quê, se somos apenas hóspedes? Quem inventou aquela história já materialista de a Criação ter engenhado um paraíso de cores, de belezas, de prodigalidade – para o ser humano apoderar-se de tudo?
    Um dos melhores negócios e espertezas já inventados pelo “ser pensante” foi responsabilizar um Criador humanizado para justificar a pretensa doação. “Tudo é de vocês e para vocês. Dominem os animais, cresçam e multipliquem-se, povoem a Terra.” Ora, por que toda essa aventura rocambolesca? Para, após algum tempo, religiosos inventarem ser, essa doação de vida, apenas passageira? E que, se nela formos bonzinhos, iremos para o céu. E, se desobedecermos, o inferno nos espera? Um pouquinho de sorte aconteceu quando alguém, inconformado com tal extremismo, inventou o Purgatório: “Tá bem. Se vocês forem mais bonzinhos, pagarão uma penitência, purgarão e irão para o céu.” Genial ideia, para os que se dizem porta-vozes do Senhor.  
    Quando haveremos de entender que essa oportunidade – a de ter nascido, de estar num local, o Brasil, onde “em se plantando tudo dá” – é a realidade que temos? Um privilégio? Quando se noticia sermos um dos principais países em produção e exportação de alimentos, isso soa com tal naturalidade que não nos surpreendemos. E nem nos orgulhamos. Parecemos aqueles filhos de pais abastados, já nascidos em berço de ouro, que nunca refletiram, sequer, no que houve de luta, de sacrifícios, de conquistas e bênçãos para a fartura vivida. Filhos mimados, sentem-se herdeiros e merecedores até do que a natureza ímpar lhes deu. 
    “É tão graciosa a terra que, querendo-a aproveitar, dar-se-á tudo nela, pelo bem das águas que tem!” Não nos soa familiar a carta de Pero Vaz? Como se ele se referisse a Piracicaba, com nosso rio benfazejo, nossos riachos, ribeirões tão ameaçados? 
    É-me cada vez mais doloroso ver a indiferença de muitos e a incompetência de outros que não ouviram os gritos de protesto e indignação que Piracicaba fez ecoar desde a década de 1950. Foi quando os crimes ecológicos começaram. Culpados por omissão.

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