No pensamento de Platão, as ideias são formas puras que constituem a verdadeira realidade e têm como ápice a ideia suprema, a do Bem. As coisas que existem no mundo visível e apreendemos pelos nossos sentidos não passam de sombras da verdadeira realidade, a qual é constituída pelas ideias, formas primordiais, arquétipos eternos. Na ótica platônica, quem se atém à realidade visível e não adentra os domínios da sabedoria filosófica é como o cavernícola que jamais saiu à luz do dia e somente tem noção incompleta e deformada - à maneira das sombras da famosa alegoria da caverna - das realidades transcendentes e imateriais. De passagem comente-se que a Angelologia cristã tem muita consonância com alguns aspectos do platonismo: também os Anjos são puras formas e são arquétipos, não propriamente eternos, porque tiveram princípio (não foram criados ab aeterno), mas existindo fora do tempo, na eternidade.
Platão concebe o homem com uma alma tríplice, com três dimensões, a racional, a irascível e a concupiscente. A primeira, sediada na cabeça, rege-se pela sabedoria ou prudência, e cabe a ela indicar o que convém fazer. A segunda, sediada no coração, rege os impulsos e afetos e é regida, por sua vez, pela fortaleza e pela coragem, que, quando bem orientadas, servem aos ditames da alma racional. A terceira, sediada no baixo ventre, diz respeito à satisfação das necessidades mais básicas do corpo humano e seus desejos, ou seja, sua concupiscência. As duas dimensões não racionais devem se pôr ao serviço da parte racional da alma. A justiça, para um homem, consiste em respeitar essa hierarquia fundamental, não permitindo que as dimensões inferiores assumam a dianteira.
A República idealizada por Platão seguia o modelo da alma tripartida do homem. A sociedade concebida por ele é um todo orgânico, à maneira de um organismo vivo. Como o homem, tem uma parte racional, constituída por uma elite de magistrados e governantes, guiados pela sabedoria e não pelas paixões mais baixas. A segunda classe é a dos guerreiros, que têm por dever a defesa da sociedade contra seus inimigos externos e internos, e cultivam em especial a fortaleza. À terceira categoria, de artesãos, agricultores e comerciantes, compete a parte econômica da sociedade. Também na sociedade, a ideia rectrix da Justiça está presente, na correta manutenção da hierarquia de funções, cada classe cumprindo seu papel específico. Se cada órgão do corpo humano cumprir bem seu papel, todo o organismo gozará de boa saúde; analogamente, se cada membro do corpo social atender bem ao que lhe compete, tudo andará bem na pólis.
Na ótica de Platão, o comércio e as riquezas não convêm aos sábios e aos magistrados, assim como tampouco o constituírem família. Se pudessem enriquecer ou passar bens para seus herdeiros, acabariam se deixando dominar por sentimentos e anseios próprios dos inferiores e descuidariam de sua alta missão.
Nesse sentido, é muito patente a analogia da concepção platônica da sociedade com a concepção da sociedade orgânica medieval, com sua bem conhecida distinção de Clero, Nobreza e Povo. Os membros do clero também não casavam e deviam, pelo menos em princípio, praticar a pobreza ou aspirar a ela; os nobres medievais não pagavam imposto em dinheiro, mas pagavam o “impôt du sang”, tendo o dever de defender a sociedade, e eram proibidos de exercer atividades lucrativas; e o terceiro estado trabalhava, comerciava, lucrava e garantia o sustento da sociedade no seu conjunto. O clero tinha todas as honras e preeminências e lhe cabia o governo espiritual; os nobres eram similarmente honrados e lhes competia a administração temporal, mas não podiam - ou pelo menos não deviam - entesourar.
Há, entretanto, uma diferença fundamental entre ambas as concepções. No Medievo, os nobres se casavam, formando estirpes. Já na República platônica, não haveria nobreza hereditária; a participação na vida pública era reservada às duas classes superiores, mas o domínio da esfera privada se atribuía à classe inferior; somente esta se beneficiaria da propriedade e constituiria família, ao contrário das classes mais altas que exerceriam suas funções por mérito, mas não poderiam enriquecer nem perpetuar-se por via familiar.
(*) Doutor na área de Filosofia e Letras, membro da Academia Piracicabana de Letras e do IHGP.