ARTIGO

Televiver: um mundo sem corpo 


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Continuo sem entender se, no ser humano, maior é a beleza da inteligência ou a sina da estupidez. Escrevi sina e confirmo a intenção. Pois, parece-me destino esse ancestral desprezo pelo bem e pelo bom, face ao mal e ao mau. Quase ao mesmo tempo, conseguimos transformar venenos em remédios e estes, naqueles. Madame Curie deslumbrou o mundo com a sua teoria da radioatividade, visando ao bem da vida humana. Mas, a partir dela, surgiu a monstruosidade da bomba atômica.

Antes mesmo da ainda chamada era cristã, já se buscava, entre os povos, uma convivência pelo menos pacífica. No entanto, quando se acreditou tê-la alcançado, tudo ruiu. Nem mesmo as grandes conquistas científicas – notáveis e até mesmo espantosas – conseguiram a tão almejada ou apenas propalada paz mundial. Pois de tal forma ainda se repetem os fratricídios que não mais se sabe dos porquês, como se o início e o fim não existissem. Bem e mal, paz e guerra, amor e ódio seriam, então, como inseparáveis irmãos siameses. Como identificar uns e outros?

Não há negar: admiráveis, têm sido as conquistas. Mas, insaciáveis os desejos e ambições humanos. Nada nunca foi o bastante. Não satisfez, ao nosso ancestral, descobrir outras vidas e espaços além das cavernas. Quis os campos. E, depois, as montanhas. E rios e mares. Ambicionou a Lua, nela pousou. Quer Marte, planeja dominar o universo. Céus e terra parecem-lhe pouco para seus apetites. De tanto querer, todavia, mal percebe o quanto já perdeu e está perdendo. E do tanto que ainda poderá perder.

Muitas vezes, a frieza da realidade desmancha o sonho acalentado. A esperança na espera de alguém amado pode morrer à decepção da chegada. O retorno pode ser mais amargo do que a partida. Quando se acredita multiplicar, pode-se estar dividindo. E, dramaticamente, quanto mais se diz somar, mais há subtrações. Viver, talvez, seja perder. Uma sina?

Quanto, o quê estamos perdendo nessa era de ganhos ditos cibernéticos? Estamos próximos de as máquinas virem, realmente, a substituir-nos em atividades e na própria condição humanas? Tornamo-nos o “Doutor Fausto” goethiano, negociando com Mefistófeles?

Todas as eras trouxeram-nos ganhos até mesmo espantosos, mas, também, perdas sem reparação. O Iluminismo – trazendo-nos as luzes da razão no século XVIII – revolucionou o conhecimento da sociedade humana. Mas teve seu preço que, de alguma forma, é-nos ainda cobrado. Aconteceu a perda do encanto, essa leveza cultural que fazia o ser humano acreditar até mesmo em estrelas que passeavam nas imensidões dos céus. O homem começou a perder a sua infantilidade de alma diante do desconhecido.

A II Guerra Mundial, conseguiu matar um espírito ainda presente na humanidade, que, até então, significara o que Kant entendera como “princípio vivificante do sentimento”. E que Descartes dignificou: “Portanto, não sou mais do que uma coisa que pensa, um Espírito, uma razão.” A bomba atômica deixou-nos, também, o medo de pensar, a fuga à reflexão.

A alma, começamos a perdê-la com a vitória do neoliberalismo, o terrível oportunista econômico num mundo sem consciência de si mesmo. E, agora, tentam roubar-nos também os próprios corpos, levando-nos a um desesperador “televiver”, a um viver virtual. Vivem-se vidas sem abraços, sem mãos dadas, sem conversas entre vizinhos. E sem afagos nem aconchegos pessoais.

Há, porém, quem não se importune com tal genocídio. Talvez, com alguma razão. Pois, sem alma nem corpo, sem encanto e sem espírito, “televiver” pode ser o que sobrou.

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