ARTIGO

“O Selvagem” (da motocicleta)


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Não há quem lá não tenha suas frustrações. Pode-se, até, tentar ignorá-las. Da parte deste escrevinhador, tenho-as. E diversas. Não as ignoro e, no exercício da crônica jornalística, exponho-as também por uma questão terapêutica. Ora, por que negá-las se, ainda, nos imagino, todos nós, sentados em sarjetas das calçadas, abrindo os corações? E, então, rirmo-nos ao constatar como somos tão semelhantes. “Omnes similes sumus”, está, sabiamente, inscrito no portal do Cemitério da Saudade. Para não nos esquecermos disso.

Frustrações acredito sejam vontades, desejos não realizados. Sempre me lembro de a mãe de meus filhos dizer que, quando eu morresse, iria inscrever na lápide do maridinho: “Ele não passou vontade!” Doce e ledo engano, como já o disse o poeta. Quantos desejos não realizados, quantas vontades não atingidas! Posso admitir tenha havido sonhos demais, objetivos racionalmente não alcançáveis. Mas o que seria do ser humano se não sonhasse? Ainda atualmente, sonho. De olhos abertos. Por exemplo: sonho com o Corinthians dando sovas homéricas no Palmeiras, lavando-me a alma. E zombando dos verdolengos.

Sonhei – ah! como sonhei – em ser namorado da Ava Gardner e, também, da Caroline de Mônaco. Se acontecesse, elas conheceriam as maravilhas e o mistério do “amor platônico”. Pois eu ficaria – até que a morte nos separasse – apenas fitando-lhes os rostos lindos, os narizinhos delas. Apenas isso. E bastar-me-ia para a glória pessoal. Acredito, até mesmo, que algum Pontífice viesse a declarar minha beatitude, exemplo de amor admirável, porém casto. Mas, de repente, as frustrações voltam a judiar do velhote inconformado. Há poucos dias, vi, na tevê, um cãozinho Colie, igualzinho à Lassie dos meus sonhos. E todo o meu amor pela cachorrinha inesquecível renasceu. A falecida mãe dos meus filhos até me estimulava: “Vá, encontre uma em algum canil mais chique”.  Mas, logo em seguida, impunha a condição: “Mas você tem que cuidar dela e lavar os pelos da menina.”  Desisti. A teoria, na prática, é mesmo outra.

Agora, a motocicleta. Ó, céus! Quanto desejei – desde a infância até a juventude – ter o que, agora, chamam de “motoca”. Na família, havia verdadeira devoção – para não dizer que veneração – a um tio que, segundo a história, fora campeão sul-americano de motocicleta. E que morreu depois de um acidente que o tornou quase que inválido. Eu quis ser ele. Como ele.  Mas proibiram-me. Negaram-me a realização de um sonho. “Motocicleta? Na família, nunca mais! Chega de sofrimento!”

O martírio da frustração quase me enlouqueceu logo ao início da década de 1950, os tais “anos dourados”. Um jovem então desconhecido – de nome Marlon Brando – incendiou a juventude mundial, propondo a rebeldia, a revolta, com um filme: “O Selvagem”. Ele, com sua motocicleta, rompia todas as regras, violando leis, normas de conduta. Enfim, um incivilizado. Queríamos ser iguais a ele. Ou igualzinho a James Dean. Aconteceu, porém, o que John Lennon avisou: “O sonho acabou”.

Meu sonho, porém, está de volta. Nas cercanias de onde eu moro, alguém alucina as pessoas com o barulho de uma motocicleta e parece pretender repetir os feitos de “O Selvagem”, mais de 70 anos depois. O motoqueiro – meu herói anônimo – inferniza a região, desafia costumes, viola legislações até mesmo de madrugada. Parece fazer questão de anunciar ao mundo: “Eu existo! Não me ignorem!”

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