ARTIGO

Uma figura pungente e dramática

25/04/2024 | Tempo de leitura: 3 min

Foto: Freepick

O Brasil sempre foi importador de recursos humanos, desde que aqui aportaram os primeiros portugueses. Somente nos últimos anos é que se vem manifestando uma tendência emigratória, que tem levado muitos brasileiros a procurarem melhores condições de vida em outras partes do mundo. Por movimento contrário, Portugal, que sempre foi país de emigração, se vem tornando, nos últimos anos, aberto à imigração, acolhendo numerosos brasileiros, como também provenientes da Europa do Leste e de outras partes do mundo.

Era clássico, no passado, o sonho do português pobre, que recebia notícias de algum parente que havia enriquecido no Brasil. Imaginava-se que aqui tudo era fácil, que aqui crescia a “árvore das patacas”, como se costumava dizer. Os enriquecidos que voltavam a suas aldeias de origem, estadeando opulência e por vezes ali construindo casas ricas de bom gosto muito duvidoso, contribuíam poderosamente para alimentar essa miragem. No romance “A morgadinha dos canaviais”, de Júlio Diniz, é bem representado Eusébio Seabra, um desses enriquecidos no Brasil, que retornou a Portugal e passou a querer dominar politicamente a aldeia de onde havia saído, 30 ou 40 anos antes, apenas com a roupa do corpo. Já os emigrantes “de torna-viagem”, ou seja, os que haviam fracassado no estrangeiro e retornavam humilhados a seus locais de origem, ainda mais pobres do que tinham sido no passado, esses não eram muito comentados. Eles próprios, envergonhados, não gostavam de falar de suas frustrações em terras estranhas. E os demais também preferiam não conversar sobre isso, pois é sempre mais prazeroso um sonho agradável do que a recordação de um pesadelo.

No folclore insular português existe uma figura pungente e dramática: a das “viuvinhas da Madeira”. O arquipélago da Madeira sempre foi grande exportador de recursos humanos, inicialmente para os Açores, depois para o Brasil e para outras partes do antigo império colonial luso; ao longo do século XX, inúmeros madeirenses também foram tentar a sorte na África do Sul, na Austrália, no Canadá, nos Estados Unidos ou na Venezuela. Eram jovens que partiam, na esperança de enriquecerem e mais tarde voltarem. Alguns partiam deixando alguma “conversada”, ou seja, uma jovem com a qual já havia combinado futuramente se casar. Mas na maioria preferiam casar antes de partir - alvitre geralmente preferido pelas próprias moças. Casavam-se então, com todos os ritos, na igreja mais próxima, viviam juntos alguns dias e logo, no primeiro navio disponível, o rapaz partia, deixando chorosa a moça, por vezes já grávida.

Seguiam-se depois os anos e as décadas, sem que a pobre moça recebesse notícias do marido. Muitos deles eram camponeses iletrados, nem sabiam escrever algumas linhas. Às vezes, chegavam boas novas: o rapaz informava que já estava bem instalado e remetia dinheiro, para a esposa ir ao seu encontro. Mas às vezes não chegavam essas notícias. Os anos iam passando e a moça se tornava velha, sempre à espera de um marido distante que talvez nem mais estivesse vivo. Fidelíssimas à memória do marido distante, não se envolviam com namoricos e eram geralmente respeitadas por toda a gente. Foi assim que se constituiu a figura típica das “viuvinhas”, incorporada às tradições e ao folclore da Madeira.

Até hoje, ainda é comum madeirenses ou descendentes de madeirenses ricos, nos Estados Unidos ou no Canadá, colocarem anúncios em jornais da Ilha da Madeira, à procura de possíveis noivas. Tão grande era a estima e a respeitabilidade da mulher madeirense, fiel ao marido mesmo em meio ao maior dos dramas existenciais, que esses ricos, quando desejam casar, é uma jovem madeirense que aspiram ter como noiva. Vi muitas dezenas desses anúncios em jornais do Funchal, capital da Ilha da Madeira.

Devido à diáspora madeirense, todos nós, que nos orgulhamos de levar sangue madeirense nas veias, temos parentes no mundo inteiro. Fiz há tempos um teste de DNA e meus dados genéticos ficaram registrados, com autorização minha, em um imenso banco de dados. Periodicamente, recebo circulares da empresa que fez o teste, colocando-me em contato com pessoas dos mais diversos países que, pelo seu DNA, são provavelmente meus primos em 4º ou 5º ou 6º grau. Ainda recentemente descobri uma prima relativamente próxima na França, de cuja existência nem suspeitava. Foi não pequena alegria!

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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