ARTIGO

Um jornalista e toda uma nação

25/04/2024 | Tempo de leitura: 3 min

Foto: reprodução

Dizem que palpite, todo mundo dá. O brasileiro, como bom palpiteiro, sabe muito bem o que é isso. Jornalista televisivo em época de Copa do Mundo é um exemplo mais que preciso desta questão. Nas transmissões das partidas de futebol vemos comentaristas, narradores e outros donos do microfone emitindo opinião de tudo como se fossem, na prática, os maiores experts da pelota. Dizem que conselho e palpite, se fossem bons, não se dava e sim se vendia.

Estamos fora do futebol nas Olimpíadas de Paris 2024, mas no mês em que se comemorou o dia do jornalista, que tal resgatar uma história curiosa ? Sempre necessária.

Há exatos 54 anos atrás, o Brasil rendeu-se a um jornalista que teve em suas mãos toda a nação. Na verdade, foram 90 milhões que torciam pela Seleção Brasileira a qual seria tricampeã mundial em 1970. A equipe estava pronta para ser comandada por um jornalista. Este era João Saldanha, natural de Alegrete, Rio Grande do Sul, nascido em 1917. Seu primeiro contato com o futebol foi tomado quando criança, no campo do Atlético Paranaense, distante dois quarteirões de sua residência. Foi jogador profissional do Botafogo carioca. Formou-se em direito e estudou jornalismo, atuando no rádio e na televisão. Tinha uma língua muito ácida, não poupando críticas aos cartolas, aos jogadores ... para tudo o que visse pela frente. Inclusive à sua sombra. Tipo de profissional difícil de se encontrar nos dias atuais. À época, nada de medalhões vestindo grifes, tatuados e que desfilam em “salto alto”.

Em plena época da ditadura militar, João Saldanha foi convidado pela CBD (Confederação Brasileira Desportiva, hoje CBF – Confederação Brasileira de Futebol) para dirigir a Seleção Brasileira de Futebol. Isso devido à experiência também adquirida como treinador desde 1957, quando foi técnico do Botafogo, campeão carioca daquele ano. Uma honra e um reconhecimento. Cinquenta anos atrás a comercialização do profissionalismo não era como hoje.

João Havelange, presidente da CBD, que de bobo não tinha nada, colocou um jornalista na intenção de que os colegas da imprensa criticassem menos a seleção canarinho. Conseguiu formar a equipe conhecida por as “feras do Saldanha”, sendo uma seleção na qual maioria dos jogadores era do Santos e Botafogo, os melhores times do final dos anos 60. As feras eram Cláudio; Carlos Alberto Torres, Djalma Dias, Joel e Rildo; Piazza e Gerson; Jairzinho, Tostão, Pelé e Edu. Vixe ! Um timaço de dar inveja !

Comunista assumido e dono de uma curta paciência, comandou a emoção dos brasileiros por alguns anos. Passou a ser visto como ameaça ao governo. Sua tática esportiva era avaliada pela Comissão de Desportos do Exército antes de ser colocada em prática. O fato de ser comunista pesou muito. Isso pode lembrar um pouco à caça às bruxas do senador Joseph McCarthy, nos Estados Unidos.

Saldanha não chegou à Copa do Mundo do México em 1970. Foi substituído três meses antes do Mundial pelo velho lobo Mário Jorge Zagalo, falecido meses atrás. A história diz que Saldanha foi exoneerado à pedido de Emílio Garrastazu Médici, presidente do país. Cabe lembrar um pouco da história: o Brasil era dominado pelos militares que calibravam na repressão contra a expressão popular. Anos depois vivíamos aquilo que ficou conhecido de “milagre econômico”. O futebol, como ópio do povo, deveria trazer o que o brasileiro queria, ou seja, era dado o pão e o circo para que a festa escondesse a realidade feita nos porões da ditadura. Aliás, ditadura cujos 60 anos foram lembrados dia 31 de março passado. Saldanha teria sido trocado por Zagallo por não querer ouvir o presidente da república sobre qual escalação seguir.

João Saldanha morreu em 1990 em Roma, durante a Copa do Mundo da Itália. Estava na Europa como comentarista da Rede Manchete de TV. Poucos jornalistas, como ele, conseguiram a façanha de comandar a emoção de toda uma nação brasileira.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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