ARTIGO

O sino da minha aldeia

22/04/2024 | Tempo de leitura: 4 min

Foto: reprodução

Tratamos, no último artigo, das jovens recém-casadas que, na Ilha da Madeira, viam seus maridos partirem rumo ao desconhecido poucos dias depois do casamento e por anos a fio ficavam à espera do retorno do cônjuge, ou pelo menos de notícias dele. As “viuvinhas da Madeira” constituem um dos mais pungentes “dramas da emigração”, mas não o único. É sempre traumático ver-se alguém transplantado, de repente, do torrão natal, dos ambientes e círculos sociais a que está acostumado, para uma terra nova, povoada por desconhecidos de hábitos e cultura completamente diferentes. 

Vou recordar hoje um episódio que li há muitos anos. Não recordo o autor. Nem sequer me lembro se era o relato de um fato realmente acontecido, ou se era um texto ficcional. Todos esses pormenores se perderam nos desvãos da minha memória. Mas o episódio em si, conservo-o bem presente no espírito. E aqui o conto aos meus leitores, deixando bem claro que sou apenas retransmissor de uma lembrança remota proveniente de leitura antiga.

O episódio teria ocorrido em Buenos Aires, num bairro popular muito pobre, praticamente uma favela. Um sacerdote foi atender um moribundo, que desejava receber os Sacramentos antes de morrer. Ao entrar no casebre, viu que tudo ali era muito pobre, mas havia junto ao leito do enfermo um objeto de luxo, contrastando com tanta pobreza: um monumental relógio de pé, com caixa de madeira envernizada, pêndulos dourados protegidos por fino cristal bisoté. Por que estaria naquele local um objeto digno de figurar no salão nobre de qualquer residência da aristocracia?

O sacerdote cumpriu seu dever. Atendeu o moribundo. Ouviu-o em confissão, consolou-o, absolveu-o, ungiu-o com os Santos Óleos. Mas, enquanto cumpria todas essas etapas do seu ministério, não podia deixar de se interrogar acerca do misterioso relógio, tão deslocado naquele ambiente.

Depois de cumpridos todos os ritos, já ia retirar-se quando, notando que o enfermo ainda conseguia falar, não resistiu mais e perguntou que relógio era aquele. - É o sino da minha aldeia! - respondeu o homem, que narrou então a história do relógio. Era uma história muito tocante, que envolvia o seu drama existencial. Contou que nascera numa pequenina aldeia de Portugal, onde havia uma igrejinha que sempre tocava o sino cada vez que um dos moradores entrava em agonia. Era um toque dobrado que todos conheciam. Todos também se conheciam, no povoado, cada doença de um aldeão era conhecida e acompanhada por todos como se se tratasse de um acontecimento na própria família. Quando o sino da agonia começava a tocar, não havia dúvida, todos sabiam “por quem os sinos dobram” - para usar a expressão de Hemingway.

Contou também que saíra de Portugal ainda moço e se dirigira à Argentina, na esperança de fazer fortuna e retornar à aldeia para que, quando chegasse sua derradeira hora, também partisse desta terra ouvindo aqueles badalos do sino da aldeia e sentindo a consolação de saber que todos os vizinhos, àquela hora, estavam rezando por ele.

Infelizmente, a vida não lhe tinha sido fácil na Argentina. Fracassara nos negócios e, embora trabalhando com afinco, jamais saíra da pobreza. Desistindo do sonho de ficar rico, começou a juntar suas economias, para retornar a Portugal. Mas as economias eram parcas e o sonho de retornar à Pátria perdida cada vez mais distante. Os anos foram passando e, cada vez mais, tornava-se claro que jamais conseguiria recursos para retornar à aldeia. Isso o afligia: como morrer, sem ouvir o sino da aldeia?

Certo dia, enquanto caminhava por uma rua central de Buenos Aires, ouviu o sino de sua aldeia. Era o mesmo som, o mesmo timbre, sem a menor dúvida. Espantadíssimo, não sabia de onde vinha aquele som milagroso. Afinal descobriu que vinha de uma relojoaria de luxo. Entrou, viu o magnífico objeto e perguntou o preço. Era alto demais. Mas os anos que economizara bastavam para pagar a maior parte do objeto. Sem hesitar, entregou todas as suas economias e contraiu uma dívida, que depois, mês a mês, com imenso sacrifício foi saldando até pagar por inteiro.

- Foi muito difícil, padre, mas não me arrependi. Estou morrendo longe de onde nasci, mas morro feliz, ouvindo o sino da minha aldeia - concluiu.

Nesse momento, o relógio imponente começou a dar suas badaladas. O moribundo fechou os olhos... e nunca mais os abriu.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do SAMPI

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