ARTIGO

Crer também por necessidade

Por Cecílio Netto | 26/03/2024 | Tempo de leitura: 3 min

Iniciamos, assim, a Semana considerada Santa. Sê-lo-ia realmente, ainda? Santidade refere-se ao sagrado, também à justiça, à virtude suprema. Não apenas em relação ao divino. Mas, sem discussão, a valores invioláveis até mesmo do cotidiano. A santidade da lei, do lar, da família, da liberdade humana.

Quanto a valores ditos excelsos, como preservá-los num tempo de materialismos incontroláveis? De apetites insaciáveis? Deveríamos, talvez, admitir a indiferença – além do desrespeito – à sacralidade não apenas do religioso, mas, também, do muito daquilo que a Vida nos apresenta. O sagrado é inviolável. Mas tornou-se raridade encontrar aquilo que a loucura humana não violou.

Como duvidar da existência do socrático primeiro motor? O chamado “big bang” não explica a origem do universo. Dá-nos o conhecimento de uma explosão. O que, porém, explodiu? Quanto a este escriba, quase nada mais lhe interessa saber do início. Nem do fim. A tolice de querer entender o Mistério foi devolvida às calendas gregas. Pois estar por aqui, ainda permanecer, sinto-o como privilégio tal que passei a desconfiar da razão. Ora, por que nela acreditar se o coração, os sentimentos, as emoções, a intuição falam de verdades outras? Eles estão dentro de mim. A razão teima em criar complicações.

A sabedoria dos ancestrais é reveladora. Aquela história, por exemplo, da Árvore do Conhecimento, o conselho para o casal nela não tocar – o que há de mais significativo? Por que Eva e Adão tinham que meter o bedelho naquele cantinho do Paraíso? Tolos, responsáveis míticos por toda essa confusão, seja inventada ou não a narrativa. Saber das coisas não é preciso. Fruir delas é preciso.

Semana Santa chegou. Mas a violência, os desrespeitos, ganância, apetites continuam os mesmos. Logo, se bem admitirmos, fracassaram as religiões no seu objetivo de universalização. Há nichos de paz, de solidariedade. Pois, na realidade, o ser humano continua vivendo a saga de oscilar entre o medo e a esperança. E esta semana – em seu significado mítico religioso – contém – ou deveria – a síntese desses sentimentos complementares. O medo da morte; a esperança da ressurreição. A sexta-feira fúnebre; o domingo da Páscoa.

Eram terríveis as semanas santas. Tétricas. Fúnebres. Uma procissão soturna saía da Catedral e percorria as ruas principais. Era a Sexta Feira da Paixão. Homens carregavam a imagem de Jesus Morto, vestidos ao rigor dos velórios e enterros. Com voz agudíssima, uma piedosa mulher imitava o pranto da Verônica, cuja toalha ficou impressa com o rosto de Jesus após tê-lo enxugado. A única rádio da cidade, a Difusora, PRD-6, transmitia apenas músicas fúnebres. Famílias iam à igreja para “fazer a hora de guarda”, o velório do Salvador. E o padre fazia uma demoradíssima homilia, a das “7 Palavras”, as últimas que a grande Vítima teria pronunciado na cruz.

Eram ritos. E, por isso mesmo, também mágicos. Pois, após tantas lágrimas e luto, acontecia a ressurreição de Jesus, no dia seguinte, o aguardado Sábado de Aleluia. Soltavam-se rojões e o grande momento era “olhar para o céu” para ver a luz deslumbrante que envolveria Jesus. E deveria ser tão poderosa que era preciso usar óculos escuros, negativos de fotografia ou de garrafas. Quem não o fizesse poderia ficar cego pelo esplendor da luz. E, por fim, ia-se para o “finale” terrível, vingativo: “malhar o Judas”, o boneco pendurado no alto de um poste, o “pau de sebo”.

Não havia, pois, possibilidade de – por medo ou por esperança – não acreditar. Era uma necessidade. O teatro da vida funcionava.

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