Aos 96 anos, o educador aposentado Cornélio Thereza Lúcio de Carvalho ainda alimenta o hábito de escrever artigos e crônicas. Não usa máquina de escrever e nem computador. Os textos são manuscritos. Lúcido, diz que escreve para evitar o Alzheimer. Além disso, mantém a mente ativa jogando sudoku e similares.
Além da escrita, sua vida sempre foi ligada à música, desde MPB à música clássica, que conheceu quando foi programador musical de rádio, onde começou como anotador de pedidos musicais e chegou a programador musical. Na rádio também conheceu as grandes orquestras e passou, inclusive, a fazer parte de uma delas.
Sempre atento, ele diz aos mais jovens que é preciso se preparar sempre, fazer cursos e treinamentos e ficar atento às oportunidades. Na escola, não desperdiçou a bolsa que recebeu para estudar no Colégio Piracicabano e recebeu medalhas de melhor aluno por três anos seguidos. “Venci na vida”, diz.
Cornélio nasceu em 8 de janeiro de 1928, mas foi registrado oficialmente no dia 21 de janeiro daquele ano. É viúvo, pai, avô e bisavô.
O senhor é professor? Bom, na verdade eu nunca fiz carreira em sala de aula, porque em toda minha carreira, no primário, eu lecionei só dois meses. Eu prestei concurso para orientador educacional, que eu trabalhei de 1951 a 1981.
O senhor começou a lecionar em Piracicaba, mesmo? Eu comecei em Jaú, na escola Industrial, era a minha escola. Fiquei lá o ano de 1952 inteiro, e, no começo de 1953, eu vim para a escola industrial de Piracicaba.
O senhor chegou a se formar em faculdade? Sim, eu fiz pedagogia, na Unimep (Universidade Metodista de Piracicaba), mas fiz depois que passei no concurso. Porque, antigamente, a maioria dos professores era auto ditada. Então, se a pessoa tivesse capacidade prestava concurso e lecionava matemática, português, inglês.
E quando o senhor veio para Piracicaba? Em 1953 eu vim pra cá e trabalhei até 1981. Aí fui pra Limeira onde trabalhei dois anos lá como inspetor escolar, mas também trabalhei em Limeira. Depois voltei para Piracicaba, onde me aposentei em 1956.
O senhor sempre foi uma pessoa ligada à cultura, conte um pouco do que gosta de fazer? Eu gosto de escrever, ler e ouvir música, clássica, popular. Escrevo artigos, tanto que fiz parte do Golpe (Grupo de Oficina Literária de Piracicaba). Eu vi no jornal que os meninos, toda semana, eles buscavam assuntos e a gente escrevia sobre esses assuntos. Eu sempre escrevi, fui incentivado na escola por uma professora que lia para a gente aí eu ganhei o curso de escrever também. Também lia bastante, mas agora diminuiu um pouco.
E a sua ligação com a música, como é? Essa é uma história longa. Em 1935 eu estava no primeiro ano do grupo escolar. Eu deveria me formar em 1938. Mas só que no segundo ano eu sofri um acidente grave na perna e perdi o ano. Então me formei em 39. Aí que eu falo que as circunstâncias sempre me ajudaram, porque em 1939 a minha mãe era cozinheira na casa do diretor da Rádio Difusora. E, no começo de janeiro de 1940, pelo contato de minha mãe, o diretor da rádio precisava de um menino para atender as pessoas que iam lá fazer pedido de música. Eu fui lá para isso e só saí de lá em 1948. Essa entrada na Rádio Difusora mudou completamente a minha vida. Porque de moleque de rua eu passei a frequentar um lugar que tinha cultura, que tinha música. Até meu português melhorou. Aí, com o tempo, eu já passei para o cargo de técnico do som. Logo mais, eu passei para o cargo de discotecário. A rádio tinha, mais ou menos, quase dois mil discos. E eu explorava todo esse material, então passei a fazer a programação da rádio. Escolhia as músicas, botava na máquina e o locutor lia depois. E aí, eu entrei em contato com todo tipo de música, que eu não conhecia, então, peguei gosto pela música.
O senhor sempre foi curioso? Sim, uma vez eu encontrei lá no escritório do dono da rádio um livro de inglês e comecei a aprender a língua, peguei o vocabulário de mais de cem palavras em inglês. E depois, tinha as músicas americanas. Estava no auge das grandes orquestras e eu fazia escolha das músicas de um programa, das 10h30 às 11h, só de música americana. Eu que fazia o programa. Acontece que, naquele tempo, tinha duas revistas de tiragem nacional que traziam letras de música. Eu tinha dicionário, tinha a letra da música, e tinha cantor inglês cantando. Então, aprendi a cantar em inglês. Aí tinha um programa na rádio, domingo à tarde, onde eu cantava música americana e lotava o auditório.
E nessa história o senhor foi parar em uma orquestra? Sim, tinha um diretor que fazia parte de uma orquestra pública, mas eu cantava em baile. Ele me ouviu cantar na rádio, me convidou para participar e fiquei um ano cantando com orquestra dele. Essa orquestra era daqui de Piracicaba e era uma grande orquestra, não ia em qualquer lugar. Naquela época, o interior de São Paulo.
O senhor também gosta de música clássica. Essa influência veio da rádio ou da orquestra? Lá na rádio eu conheci vários compositores mas não tinha os mais famosos, não tinha Mozart, Vivaldi e Bethoven. Vivaldi porque ele não era conhecido e os outros dois porque quem ia fazer a compra de discos em São Paulo não se interessou. Eu ficava ouvindo os discos e programava as músicas.
E tinha bastante audiência, o programa? Tinha, era o dia todo. O programa era dividido. Tinha hora para música americana, hora para a música mexicana, música venezuelana, outra hora era música americana. Conheci muita coisa.
Além de cantar e participar da orquestra, o senhor também assistia shows musicais? Quando vinha grandes orquestras em São Paulo, eu ia um mês antes comprar o ingresso, que era caro. Pega um ônibus, durava umas três horas a viagem, e ia comprar o ingresso na avenida Faria Lima. No banco Francês.
E quantas orquestras o senhor chegou a ver? Dessas internacionais eu vi umas cinco ou seis. Uma das que me marcou a Orquestra Estatal da Rússia. Eu não acreditava que estava assistindo. Eu ia na orquestra no sábado à noite e no dia seguinte ia no (estádio do) Morumbi assistir jogo.
A sua casa é cheia de instrumentos musicais. Esses violões, o senhor aprendeu a tocar? Eu toco, fiz treze anos de aula, eu queria tocar música clássica, mas não tinha esse preparo. Tocava bastante seresta, que uma coisa de casa, de família.
Atualmente, como o senhor ocupa o seu dia? Para me livrar do Alzheimer, eu faço sudoku. Mas eu tenho boa saúde, me sinto bem. Nunca fumei e nunca bebi. Além disso, leio e escrevo quando dá vontade.
Nessa sua trajetória de vida, o que o senhor não fez que gostaria de ter feito e o que ainda quer fazer? Olha, eu nunca tive esse pensamento. Porque a minha vida foi feita de circunstâncias que me ajudaram sempre. Primeiro, de eu ter saído em 1939 da escola e ter aquela oportunidade de trabalhar na rádio. Mas em 1942, outras circunstâncias apareceram na minha vida. A minha mãe já não era cozinheira na casa do dono da rádio, mas era cozinheira na casa de dois professores. Esses professores me arrumaram bolsa para eu estudar. Aí, comecei outra vida. Fiquei oito anos estudando no Colégio Piracabano, com bolsa de estudo. Em todo o ginásio, eu sempre tirei nota máxima. Por três anos consecutivos eu ia receber medalhas de melhor aluno. E teve uma terceira circunstância. Quando eu estava na rádio, eu estudava de manhã e trabalhava à tarde e à noite. Aí, quando terminou o ginásio em 1947, em 1948 eu entrei no colegial, que tinha aula de manhã e à tarde e duas vezes por semana tinha laboratório, então não podia trabalhar mais. Pensei, o que eu vou fazer? Desistir da rádio. Aí passei a fazer bico, dando aula particular de latim, matemática e inglês. E vivia fazendo isso, mas em janeiro de 1949, outra circunstância, três pessoas me procuraram. Eram funcionários do Banco do Brasil. Eles queriam fazer faculdade, mas eles não podiam porque o ginásio deles era de cinco anos, que terminou essa fase em 1942. Então eles precisavam fazer mais dois anos para completar os sete anos que eram exigidos. Então foram no Colégio procuraram o diretor e pediram pra criar um curso, mas precisavam arrumar alunos. Então me procuraram e comecei a estudar, teve uma época que estudava de manhã, de tarde e de noite. Foi difícil, mas eu venci.
Um último recado, mas para o público jovem. Qual a importância de adquirir conhecimento? Eu fazia palestras em escolas. Eu falava para os meus alunos que as oportunidades não aparecem para as pessoas, são as pessoas que aparecem para as oportunidades. Estejam sempre preparados. Façam cursos, estudem, aprendam um ofício. Então a mensagem que eu deixo é essa. A gente tem que se preparar sempre, adquirir habilidades, porque quando aparecer a oportunidade você estará preparado.
Clique para receber as principais notícias da cidade pelo WhatsApp.