ARTIGO

Uma profissão bem estranha

Por Armando Alexandre dos Santos |
| Tempo de leitura: 4 min

Assistimos nas últimas décadas à criação de uma catadupa de novas profissões inexistentes no passado, muitas delas já objeto de cursos superiores de graduação e até dos cada vez mais bagatelizados mestrados e doutorados. Ainda sou do tempo em que Engenharia era Engenharia, e só isso. Hoje, há mais de 30 cursos de Engenharia diferentes: Engenharia Civil, Aeronáutica, Naval, Cartográfica, Física, Hídrica, Mecânica, Mecatrônica, Metalúrgica, Química, Têxtil, Elétrica, Agrícola, de Agrimensura, de Horticultura, de Alimentos, Florestal, Ambiental, Industrial, de Produção, de Materiais, Biomédica, Geriátrica, Acústica, Sanitária, de Energia, de Minas, de Petróleo e Gás, de Pesca, de Telecomunicações, de Computação, de Segurança no Trabalho etc. etc. Se fosse falar dos cursos “de Gestão”, que hoje parece estarem na moda, a ladainha seria ainda maior. Existem cursos de Gestão para tudo, absolutamente tudo que imaginar se possa.

Essa profusão de cursos corresponde, claro, a necessidades do mercado e à consequente criação de novas profissões.

Fiquei sabendo que existe, e tende a ser cada vez mais valorizada, a profissão (sic) dos “personal friends”, pessoas contratadas para fingir que são amigos. Acompanham quem os contratou em visitas, passeios, sessões de teatro, atividades esportivas, conversam, debatem assuntos culturais, jogam cartas etc. etc. Fazem tudo o que um amigo faz, mas atuam profissionalmente. E, é claro, cobram por hora de “serviço”.

O trabalho só tem início depois de assinado um contrato, no qual são estipuladas as condições da prestação de serviço e no qual, também, fica claro que não há, no relacionamento entre contratante e contratado, nenhuma natureza sexual. Não se trata, pois, de prostituição disfarçada. Também não vale alegar, após algum tempo de “amizade pessoal”, que houve “relacionamento estável”, com as consequências jurídicas de tal condição.

No seu portfólio de propaganda, o “personal friend” inclui, entre outros elementos, seu currículo universitário, as línguas que fala, seus gostos culturais e artísticos, suas preferências culinárias - tudo de modo a poder, o interessado em seus serviços, avaliar se encontrará nele, realmente, um “personal friend” com o perfil desejado.

Confesso que foi de espanto minha primeira reação quando tomei conhecimento da existência dessa nova profissão. Nunca podia imaginar que amizade fosse mercadoria passível de ser comercializada. Sempre entendi que a amizade - assim como o amor - ou se dá de graça ou não existe. O sexo pode até ser objeto de comércio, mas o verdadeiro amor não se vende nem se compra.

Daí minha surpresa, e quase minha indignação, diante da ideia de transformar a amizade em mercadoria comercializável. Eu jamais contrataria um “personal friend”, mesmo porque sou, graças a Deus, muito sociável e facilmente me relaciono com as outras pessoas. Creio que nunca me faltarão interlocutores, ou pelo menos assim espero...

Mas, à medida que fui refletindo, comecei a compreender a perspectiva dos (ou das) infelizes que precisam pagar para ter um “amigo pessoal”. E comecei a ver com outros olhos o drama de tais pessoas. Entre os instintos da natureza humana, sem dúvida o da sociabilidade é um dos mais vigorosos e atuantes. O homem, segundo o velho ensinamento de Platão e Aristóteles, é um ser racional e social, um “animal político”, sendo-lhe próprio viver em sociedade e relacionando-se com seus semelhantes. A solidão e o isolamento fazem sofrer enormemente. “Ai de quem está só!” - diz a Bíblia.

O instinto de sociabilidade é tão entranhado na vida humana que, nas prisões, a pior situação não é a de quem está trancafiado numa cela superlotada, na companhia de criminosos violentos, mas é a de quem está sozinho, na famosa e terrível “solitária”.

A Marinha remunera muito bem os guardas de farol, profissionais contratados para acender os faróis, ao cair da tarde, e apagá-los quando amanhece. É um trabalho simples, leve e muito bem pago, mas tem o ônus de exigir um isolamento total. Os candidatos se apresentam em grande número, e logo após os primeiros dias desistem quase todos, porque não aguentam a solidão e receiam enlouquecer. O resultado é que estão sempre em falta os guardiães de farol.

Ora, as condições da vida moderna fazem com que as pessoas, ainda que vivendo em cidades de milhões de habitantes, muitas vezes se sintam mais isoladas do que um guardião de farol ou do que um Robinson Crusoe na sua ilha. Famílias desunidas, relações sociais e econômicas conflituosas, anonimato e indiferença nas multidões, falta de calor humano - tudo isso é antinatural e faz sofrer. Quantas doenças mentais e suicídios não têm aí sua origem!

No mundo globalizado, mercantilista e hiper-tecnologizado em que vivemos, os indivíduos se sentem indefesos e desprotegidos diante de forças macroeconômicas que dirigem e condicionam sua vida, diante de um Estado cada vez mais onipotente e invasivo da sua privacidade, diante de fatores que ele não é capaz de controlar e nem sequer compreender inteiramente. No passado, quando a vida familiar e associativa era mais intensa, havia uma série de mecanismos de sustentação psicológica que hoje, infelizmente, não mais atuam.

Nessas condições, como estranhar que, à falta de alternativas válidas, se recorra a “personal friends” pagos comercialmente, para atenuar ao menos um pouquinho a solidão? É um paliativo, bem sei, mas pode representar um alívio considerável para muita gente.

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