Em Querelas do Brasil, Maurício Tapajós e Aldir Blanc dizem: “O Brazil não conhece o Brasil / O Brasil nunca foi ao Brazil”.
A música, lindamente cantada pela eterna Elis Regina, nos lembra nomes de pássaros, plantas, lugares, linguagem indígena, entre tantas palavras que são brasileiríssimas, mas que nem todo brasileiro tem afinidade: ururau, aki, ataúde, porecramecrã, ratatá, tororó, olerê…
E se nosso país continental, de profundeza cultural infinita, fosse reduzido a um lugar fechado com representantes de várias de suas regiões, classes sociais e vivências diferentes?
É isso o que está acontecendo na casa mais vigiada do Brasil, o Big Brother. Tá, você pode pensar: “ah, é só um reality show” e que a Globo fatura milhões em cima de um programa sensacionalista.
Cada um tem sua opinião sobre o BBB. Mas ninguém pode negar que, cada vez mais, a direção do programa está movimentando o jogo, explorando justamente essa barreira que temos em viver em um país tão grande: as diferenças regionais e culturais.
Imagina se criassem um reality show com um francês, um alemão, um espanhol, um italiano, um inglês… um participante para cada país europeu. O BBB 24 é basicamente isso, mas no lugar de países são os estados brasileiros.
E vamos combinar que cada estado desse nosso Brasilzão é um universo. E dentro de cada um deles cabe vários planetas diferentes.
O BBB é um pouco da representação desse Brasil que não conhece o Brasil -- ambos assim, com “s” mesmo.
As “tretas” dentro do programa têm se intensificado justamente por conta dessa falta de conhecimento que temos dos nossos próprios conterrâneos. O que se come, se veste e se fala em uma região do país é completamente diferente de outra.
Aí rola treta por comida no café da manhã, treta por uma palavra usada que outro não sabe o significado, até quase violência física chega a acontecer por causa de um “calabreso”, olha só!
Quem assiste ao BBB 24 já deve ter percebido o tanto de desentendimento entre brasileiros que são verdadeiros estrangeiros entre si. Quem não está muito dentro daquele padrão (alô SP e RJ) fica deslocado ou é acusado e culpado de tudo.
E aí também entre as diversas camadas sociais em que estamos. Em um dos paises com maior desigualdade social do mundo, não seria diferente.
Vemos o exemplo do Davi, um motorista de Uber da Bahia, tendo sérios desentendimentos com Yasmin Brunet e Wanessa Camargo, duas socialites do Rio e de São Paulo, respectivamente, que muito provavelmente nunca estiveram no mesmo patamar de rotina de uma pessoa como ele.
O topo de suas cadeias impede enxergar o que há de mais humano em Davi, seu instinto de sobrevivência. E quanto mais humano ele se mostra, mais uma pessoa agressiva elas vêem.
É um abismo que existe entre pessoas que precisam conviver sob o mesmo teto para participar de um jogo real onde o reality, na verdade, parece uma bela ficção -- afinal, onde você veria a patroa e o chofer dividindo o mesmo banheiro?
Isso também diz muito em como não temos o “tato” para conhecer e conversar com quem é diferente de nós. Assistindo o programa é perceptível ver que falta muito mais a escuta do que a fala.
“Trocar”, verbo tanto usado pelos participantes da casa, é justamente falar e escutar. Sendo muito mais importante saber escutar. E voltando à referência inicial, será que o Brasil está escutando o Brasil?
E esse Brasil, que eu falo, não precisa estar tão longe assim não. Ele está ao nosso lado. Na fila do banco, no restaurante, na padaria, na nossa família.
Quão próximos ou afastados estamos do Brasil que, no fundo, somos nós mesmos?
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