ARTIGO

Saudosismos de um quase septuagenário

Por Armando Alexandre dos Santos | 30/01/2024 | Tempo de leitura: 4 min

Nossos antepassados reciclavam. Na segunda metade do século XX, esse hábito praticamente desapareceu, por efeito da industrialização acelerada, que causou o barateamento dos custos da produção industrial e alimentar. Não somente passamos a desperdiçar alimentos aproveitáveis e tecidos ou papéis ainda em condições de servir, mas também objetos de uso mais duradouro se tornaram descartáveis.

Antigamente, as navalhas de fazer a barba eram usadas a vida inteira. Às vezes eram até passadas para filhos e netos, servindo a duas ou três gerações de homens da mesma família. Ainda hoje, é comum aparecerem em antiquários velhas navalhas de mais de um século, fabricadas em excelente aço de Solingen, na Alemanha, ou de Toledo, na Espanha, em perfeitas condições de uso. São valorizadas como antiguidades, mas ninguém mais as usa, nem mesmo os barbeiros de profissão. Os leitores jovens que me leem (se é que eles existem...) se perguntarem aos seus bisavós (se é que existem...), saberão como é que desapareceu o uso das navalhas.

Na primeira metade do século XX, generalizou-se o uso dos aparelhos de barbear abastecidos com lâminas finas trocáveis, as famosas giletes. Apareceram pela metade do século barbeadores elétricos, que não chegaram a se generalizar. E mais perto do final da centúria, estabeleceu-se a voga dos aparelhos de barbear inteiramente descartáveis, com corpo de plástico e laminazinha metálica; são usados uma ou duas vezes e jogados fora. São utilíssimos para aumentar a poluição global.

Com instrumentos de escrita, processo análogo se deu. O século XX iniciou com velhas penas metálicas molhadas em tinteiros e com a escrita cuidadosamente secada com os tradicionais mata-borrões. Assistiu depois à generalização das canetas tinteiro, que embutiam no seu corpo o reservatório de tinta e (novidade maravilhosa!) dispensavam o uso de mata-borrões, porque a tinta que soltavam era tão ajustada que secava instantaneamente. Vieram em seguida as esferográficas, patenteadas na Argentina pelo húngaro László Biró e mais tarde vulgarizadas pelo francês Marcel Bich, que lançou no mercado as famosas canetas Bic, tão baratas que praticamente se tornavam descartáveis. Não terminou o século sem que entrassem em cena os teclados de computador, por meio dos quais está desaparecendo a escrita manual. Hoje, quase mais nada se escreve à mão, nem mesmo cheques bancários, também em vias de desaparecimento. Ainda sou do tempo em que, nos cursos primários, se ensinava e praticava caligrafia, Também a arte de escrever com letra bonita e regular desapareceu completamente. Hoje, até professores universitários, quando precisam escrever à mão a dedicatória de um livro de sua autoria, produzem garranchos medonhos que no passado envergonhariam um ginasiano. E que dizer dos grafólogos, que outrora analisavam a psicologia e o caráter de uma pessoa pela sua letra? No mercado de trabalho, têm tantas possibilidades de arrumar emprego quanto um escriba do velho Egito que viajasse no tempo e quisesse emprego em 2024.

Um relógio de bolso, antigamente, era objeto de luxo. Dava status. Era legado por testamento a um filho, a um neto, a um amigo querido. Portar um relógio que pertenceu a um antepassado ou a um amigo falecido significava prestar homenagem a sua memória. Quando o Marechal Osório faleceu, seu filho quis homenagear o mais ilustre dos amigos de seu pai, oferecendo a esse amigo o velho relógio que acompanhara o “centauro dos Pampas” durante a Guerra do Paraguai. Quem era esse amigo? Ninguém menos que o Conde d´Eu, sob cujas ordens Osório gloriosamente servira, na fase final da guerra. O Conde d´Eu conservou com veneração essa relíquia do velho companheiro de armas, conforme registrou em carta à Baronesa de Loreto.

Todos os antigos possuíam seus relógios mais ou menos históricos. Até simples plebeus, como o que escreve estas linhas. Ainda conservo, se bem que guardado numa gaveta e fora do uso diário, um velho relógio suíço de excelente marca (Zenith), fabricado no fim do século XIX e premiado na Exposição de Paris, do ano de 1900. Pertenceu a um tio-avô meu, que lutou na Primeira Guerra Mundial, no Corpo Expedicionário português que serviu em território belga.

Os relógios de bolso foram sendo substituídos, nas décadas iniciais do último século, pelos relógios de pulso, mais práticos. O custo de cada relógio foi, também, caindo e o próprio relógio deixou de ser um objeto quase de luxo, passando a ser algo corriqueiro, ao alcance de qualquer pessoa. Vieram, depois da Segunda Guerra e do reerguimento econômico do Império do Sol Nascente, os relógios japoneses (Seiko, Orient e Citizen, entre outros), que passaram a ser movidos por quartzo. Rapidamente dominaram o mercado mundial, quebrando a hegemonia secular dos helvéticos. Eram mais práticos e baratos; tinham, ademais, a vantagem de não precisar, como os antigos relógios mecânicos, de ajustes milimétricos dados por relojoeiros hábeis, para atingiram o padrão desejável da exatidão. Hoje, até os relógios de pulso estão desaparecendo. Quase todo mundo “olha as horas” no celular ou no smartphone. Os mais jovens nem sequer sabem “ver as horas” em relógios de ponteiro.

Recordo a surpresa que tive quando, aplicando certo dia uma prova a adolescentes do Ensino Médio, um aluno me perguntou as horas. Queria saber quanto tempo ainda lhe restava para terminar a prova. Eu ingenuamente lhe estendi o braço, para ele próprio ver as horas no meu relógio. E o menino confessou: - Não sei ver as horas nesses relógios complicados.

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