ARTIGO

Padre Passos: o centenário de um sábio

Por Armando Alexandre dos Santos | 17/01/2024 | Tempo de leitura: 4 min

Neste ano se completarão 17 anos de falecimento de um amigo muito sábio, cujo centenário de nascimento estamos agora comemorando. Refiro-me ao nosso querido amigo Padre José Affonso de Moraes Bueno Passos, que residiu nos últimos anos de sua vida em Piracicaba, no Lar dos Velhinhos. Era, na acepção própria do termo, um sábio.

Ocorreu numa manhã de julho de 2007 seu trágico falecimento, vitimado por um acidente de automóvel. Ele se dirigia de automóvel para São Paulo, onde iria fazer exames médicos, quando, na rodovia Bandeirantes, perto de Campinas, seu carro chocou-se com uma carreta. Padre Passos teve morte instantânea e foi sepultado no dia seguinte em São Paulo, muito cedo, sem que seus numerosos amigos pudessem ser avisados e chegar a tempo.

A velha frase latina "de mortuis, nisi bomum" geralmente se entende no sentido de que, a respeito de mortos, somente se deve falar bem, esquecendo suas falhas e defeitos, pois diante da majestade do mistério chamado Morte, tudo o que é menos nobre desaparece e, na ótica dos conhecidos de um falecido, somente permanecem as lembranças benévolas e favoráveis.

Isso é verdade para a imensa maioria dos mortos. Mas há, também, casos muito raros de pessoas falecidas que tiveram vidas tão exemplares que, ainda que se quisesse procurar nelas defeitos, estes não seriam facilmente encontráveis. A tais pessoas privilegiadas também se pode aplicar o "de mortuis nisi bonum", mas a um título diverso do comumente empregado: delas, não se fala mal por falta de matéria, e não por respeitosa condescendência.

Um desses raros privilegiados foi, certamente, o saudoso Padre Passos.

Ordenado sacerdote em Roma, em 1950, doutorou-se na Universidade Gregoriana com brilhante tese de mais de 1.000 páginas, toda escrita em latim, sobre o pontificado de Bonifácio VIII. Retornando ao Brasil, exerceu atividades sacerdotais na Arquidiocese de São Paulo, e chegou a titular da importante paróquia de Nossa Senhora do Brasil, mas foi precocemente aposentado em 1968, por graves problemas de saúde.

Os problemas de saúde, aliás, o acompanharam desde a adolescência. Os médicos diziam que ele não chegaria aos 30 anos de idade. Seu pai, também médico, faleceu por problemas cardíacos, sem ter chegado à casa dos 40 anos.

Se não fossem os problemas de saúde, Padre Passos por certo teria chegado a bispo ou cardeal. Pouquíssimos membros do Episcopado atual, aliás, têm uma cultura como a de Padre Passos, que até à morte foi consultor e parecerista de muitos bispos amigos, que recorriam a suas luzes para a solução de problemas teológicos, canônicos ou morais complicados.

Embora cardiopata e considerado inepto para o duro trabalho paroquial, Padre Passos, extremamente ativo, continuou trabalhando e iniciou tardiamente sua carreira, também brilhante, como docente universitário. Conquistou mais dois títulos de Doutor, e foi durante muitos anos professor de Arqueologia e Antropologia na USP e em outras universidades. Realizou trabalhos arqueológicos em sambaquis e especializou-se em Pré-História do Brasil. Como cientista, marcou época e teve numerosos discípulos que hoje lecionam em várias universidades.

Pouco antes de falecer, já com 83 anos de idade e tendo passado por mais de 15 cirurgias, algumas das quais muito sérias, Padre Passos ainda trabalhava. Como sacerdote, orientava espiritualmente a muitas almas e visitava enfermos. Mais de uma vez tive ocasião de acompanhá-lo em visitas dessas. Como professor, ainda participava de atividades na USP, orientando teses, participando de bancas examinadoras e acompanhando com interesse as principais revistas de sua especialidade científica, de vários países, para manter-se atualizado.

No Instituto Histórico e Geográfico de São Paulo, era um dos membros mais antigos e benquistos. Nas reuniões da Diretoria, quase não falava. Ficava modestamente em seu canto. Sabia ouvir e estimulava a todos nós para que falássemos e manifestássemos nossas opiniões. Só quando instado manifestava seu modo de pensar, fazendo-o geralmente em frases curtas, quase lapidares, cheias de bom senso e sabedoria, indicando soluções definitivas. Nas horas difíceis, era sempre a ele que recorríamos.

Aqui em Piracicaba, Padre Passos telefonava-me com freqüência, para tratar de assuntos do Instituto ou, apenas, para conversar. Cada conversa com ele era, para mim, uma verdadeira aula.

De tempos em tempos, ia a São Paulo, conduzido no automóvel que sua irmã Yara, religiosa da Congregação de São José, mandava para transportá-lo. No caminho, parava sempre perto de Campinas, para comprar as frutas requeridas por sua rígida dieta alimentar e também, pitorescamente, para fazer sua "fezinha" numa agência lotérica. Depois, prosseguia viagem até à Capital, onde tinha um apartamento no bairro de Pinheiros.

Foi numa dessas viagens que o Senhor o chamou a Si. Que Ele o tenha em sua companhia! A todos nós, que tivemos o privilégio de ser seus amigos, ele deixou um grande vazio. E muitas saudades.

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