É óbvio não ter, o escriba, nada a ver com isso. Mas nem todo o óbvio é verdadeiro. Escrever, pois, que nada tenho em relação ao jogo-do-bicho seria mentira descarada. Era uma festa nacional. E implicava análises, interpretações, questões fenomenológicas. À época, os sonhos – tanto os dormindo quanto em vigília – eram importantes. Para desvendá-los, consultavam-se curandeiros, pais-de-santo, benzedeiras. Lembremo-nos das riquezas que Freud, Jung e tantos outros descobriam nos sonhos alheios. Não sei se entendiam os seus próprios.
Havia, como sempre, os chatos desejando fossem para o inferno os jogadores. Mas fingiam ignorar a formidável massa humana que “jogava no bicho”. Proibi-lo foi um puritanismo também formidável de Getúlio Vargas, o ditador de plantão. Ele, considerado o “Pai dos Pobres”, foi o “desmancha prazeres” dos mais humildes. Mais do que falso moralismo, foi – no entender de muitos – uma desumanidade. Pois roubou, ao brasileiro, o seu direito ao sonho, à esperança, às ilusões. Para enfrentar a cruel realidade do cotidiano, sonhar é preciso.
Aliás, todo moralismo é autoritário, pretensão de – sem fundamentá-las – impor, à sociedade, convicções próprias para interpretar a realidade. A condenação ao jogo é própria dessa verdadeira doutrina moralista. Pois o jogo faz parte da condição humana. Viver é jogar. Algo, pois, que se justifica por si mesmo, independendo do resultado que virá. E não há como esquecer que filósofos antigos – como o fez Aristóteles – comparou o caráter do jogo ao da felicidade e à virtude. Que estas se justificam também por si mesmas, não sendo necessárias, com sentido de dever, como o trabalho.
Estudar a natureza do jogo, refletir sobre a sua função até mesmo biológica e estética sobre o ser humano – eis uma aventura desafiadora. Enfim, a finalidade do jogo – qualquer jogo – é o prazer. E como disso duvidar ao se ver e apreciar os chamados jogos infantis? Mas sociedades materialistas, de desempenho, apenas se preocupam com o prazer se este proporcionar lucro. Visam ao trabalho, ao dever. E, portanto, às proibições, ao legalismo.
Convivi com parentes ativistas no jogo-do-bicho: banqueiro, gerente de banca, vendedor. E apostadores, quase todos eles viciados. Por essa verdadeira loucura, lembro-me de que, em minha casa, dona Fina e minha mãe logo se perguntavam com o que uma e outra, à noite, haviam sonhado. Pois o sonho é um dos referenciais para se fazer a aposta. E cada animal era vinculado àquilo com que se sonhava. Ou ao contrário: sonhar com algo sempre havia um bicho para explicar.
O mais famoso – àquela época – era o veado, número 24. Ora, se se sonhasse com alguém ou algo efeminado, era quase certo que iria dar o veado no fim da tarde. As interpretações e os vínculos entre sonho e bichos eram admiráveis. O cavalo, por exemplo, punha-se como um dos favoritos nas interpretações que se faziam. Se sonhava com alguma herança, jogava-se no cavalo. E as possibilidades eram diversas: sonhar com cavalo preto, sorte no jogo; com cavalo gordo, riqueza; cavalo morto, morte de parente.
Um dos bichos também muito considerado era o porco. Sonhou com briga em família? Jogue no porco. Matar porco, fartura; sonhar com porcos no chiqueiro, saúde. E o difamado urubu, que chamamos de corvo? Sonhar com corvo negro era esperar por luto na família. Mas, fosse branco o bichinho, o sonho previa casamento. Quanto à coruja, azar na certa.
Uma festa, pois, do cotidiano. Mas – ai de mim! – no bicho nunca joguei. Sempre apostei em gente. E acertei apenas algumas vezes.
Para acompanhar outras crônicas desta série, acesse a TAG “Reflexões Aldeão”.
--------------
Os artigos publicados no Jornal de Piracicaba não refletem, necessariamente, a opinião do veículo. Os textos são de responsabilidade de seus respectivos autores.