ARTIGO

O dom da palavra e a técnica da escrita

Por Armando Alexandre dos Santos | 05/12/2023 | Tempo de leitura: 4 min

O dom da fala, característico único da nossa espécie, é precioso. É pela fala que o ser humano, racional e criado à imagem e semelhança de Deus, se diferencia dos demais seres animados que existem. É por meio da fala que nos comunicamos com nossos semelhantes, com eles intercambiando informações e entreajudas indispensáveis para a sobrevivência da nossa espécie. O homem, ensinou Aristóteles, não é apenas um ser racional, mas é também um ser político - ou seja, destinado a viver politicamente, em sociedade. Repugna à natureza humana viver isoladamente, à maneira de um imaginário Robinson Crusoe.

São Tomás de Aquino, desdobrando o ensinamento aristotélico, explicou que a natureza dotou os animais de pelos, de couro ou de escamas para sua proteção; dotou-os de defesas (unhas, dentes, chifres) contra seus inimigos; ou pelo menos deu-lhes velocidade, para fugirem deles. Já o homem não dispõe desses recursos, mas dispõe da razão e das mãos. Fazendo uso da razão, consegue com as mãos suprir as necessidades. Mas, dada a amplitude e o número dessas necessidades, não basta um só homem, ou mesmo um pequeno grupo de homens. É, pois, natural ao homem viver em sociedade, e em sociedade numerosa.

Ademais, os animais conhecem, por instinto, aquilo que lhes é útil e nocivo; a ovelha naturalmente vê no lobo um inimigo, certos animais conhecem as ervas medicinais que lhes convêm etc. Essas coisas necessárias, o homem só na vida em comum as aprende. É verdade que, fazendo uso da razão, muita coisa ele pode aprender por si. Mas é impossível adquirir de tal forma todos os conhecimentos indispensáveis para a vida. Por esse motivo, devem os homens viver em sociedade, ajudando-se mutuamente.

A vida em sociedade somente é possível graças ao dom da palavra, que permite a expressão total do pensamento. Os animais podem comunicar suas paixões de formas diversas (por exemplo, o cão exprime a sua raiva latindo), mas o dom da palavra inclina especialmente o homem ao convívio de seus semelhantes.

A palavra, por sua vez, pode ser oral, e o é na imensa maioria dos casos; mas também pode ser escrita. A capacidade de escrever é, pois, um prolongamento dom da fala.

Tanto o texto oral quando o escrito são produções verbais e, pelo menos em princípio, devem ser organizados de modo coerente, fazendo sentido e exprimindo determinada ideia, transmitindo determinada mensagem.

Na linguagem oral, o emitente dispõe de maior liberdade, ajudado que é, na transmissão da sua mensagem, por numerosos fatores coadjuvantes: o timbre da voz, a maior ou menor ênfase com que fala, a linguagem corporal, a mímica, a entoação, o jogo dos olhares, tudo isso acrescenta, ao que está sendo dito, elementos significativos. Admitem-se, na linguagem oral, anacolutos, quebras sintáticas, aporias, hesitações, expletivos, interjeições, repetições etc. - recursos esses que, na linguagem escrita só podem figurar, quando podem, com muita parcimônia.

Já na linguagem escrita, em que habitualmente se requer uma formalidade maior e uma correção gramatical e estilística mais estrita, não intervêm esses fatores coadjuvantes, cabendo unicamente a quem escreve, se for talentoso, suprir a falta deles. Numerosos são os recursos à disposição do bom redator para, de acordo com os gostos e costumes de sua época, atrair e prender a atenção de quem o lê.

Pessoalmente, gosto muito do estilo de linguagem escrita que vai se desenvolvendo dialogicamente, numa interlocução com um imaginário leitor. Esse estilo, largamente utilizado por eminentes escritores do passado, como por exemplo Machado de Assis e Eça de Queiroz, e também, de modo maravilhoso, por Guimarães Rosa, é sempre atual e, pela experiência que possuo de 47 anos de prática jornalística, costuma ser bem sucedido.

Nesse estilo, quem escreve vai acompanhando passo a passo o leitor, como quem está junto dele e vai, também a cada passo, observando suas reações, suas dúvidas, suas objeções, seu maior ou menor interesse, suas distrações. Importantes, nesse estilo, são as prolepses, por meio das quais o emitente prevê e responde a imaginárias objeções ou dificuldades do hipotético leitor/interlocutor. Importante também é que, nos trechos mais difíceis ou mais áridos, o emitente saiba temperar o texto com alguma nota atraente, com algo de novidade, de inesperado, até mesmo, se necessário, de chocante, ou acrescente uma nota de ironia ou humor. Tudo para manter continuamente a empatia, a ligação quase umbilical que o bom escritor deve manter com quem o lê. Entremear as exposições mais teóricas e esquemáticas com a apresentação de exemplos concretos em linguagem narrativa é, também, um recurso muito útil.

Curiosamente, à medida que um bom escritor desenvolve um estilo desses, até mesmo no modo de falar ele conserva essas características. Ele saberá, ao expor oralmente uma tese, prender a atenção dos ouvintes de modo análogo à forma como prende a atenção dos leitores que leem seus textos. O resultado, que pode parecer paradoxal, é que, ao fim e ao cabo, tanto a linguagem oral quando a escrita se aproximam bastante, sendo o modus loquendi bem próximo do modus scribendi.

Nada mais natural. Afinal, tudo é comunicação humana, tudo é texto, tudo é linguagem...

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