E a memória, de onde ela brota? As teorias são muitas. E fascinantes. Uma reflexão de Santo Agostinho é, para o escriba, tocante: “A memória é o ventre da alma.” Como, pois, seria possível querer administrá-la, controlando-a, tentando esquecer, sepultando acontecimentos, selecionando lembranças? Recordar apenas do quê e daqueles que amamos, que nos fizeram bem? E enterrar no passado o que doeu, o que nos machucou?
A memória acompanha-nos até quando desejamos nada mais lembrar. É traiçoeira. Aparece sem ser esperada. Some, se dela precisamos. Eis que, de repente, esqueço até mesmo o que pretendia dizer num instante. E, também repentinamente, algo reaparece como que redivivo. E pode ser algo tão simples, banal. Mas com o poder de agitar o ventre da alma. Acontece.
Eis que tudo se me atropelou ao escrever a palavra “para”. Pequenina, ela, porém, carrega, ao ser usada, sentimentos, emoções, desejos, intenções, belezas, feiuras. Tentei buscar na memória uma reflexão desafiadora que penso tenha sido de autoria do então Cardeal Ratzinger, pontífice depois. Ratzinger, àquela época, dissertou a respeito da aparentemente simples palavrinha, aconselhando quanto às advertências que nela podem estar. Neste mesmo instante, pergunto-me: “Estou escrevendo para quem?” Não me indago do porquê. Nem do para quê. Pois algo do porquê já entendi: escrevo por ser como o meu respirar. Portanto, para manter-me vivo. Para quê? Ora, para contar, narrar coisas, dizer de sonhos, de esperanças, de decepções, de ternuras, de raivas, de medos. E das mil dúvidas causadas pelas incessantes transformações que nos alcançam.
Tal qual o “por quê”, o “para quê” pode não ter respostas. Num domingo, levanto-me cedinho da cama: “para quê?” Por quê não ficar deitado, espreguiçando? “Para quê” trabalhar tanto se já tenho mais do que o necessário “para” suprir minha gente querida? Estou indo “para” onde? Na realidade, trabalho “para” os meus filhos ou “para” mim mesmo? “Para” manter o hábito, “para” não ficar em casa, “para” espantar os mil fantasmas que me acompanham?
Ficar bonzinho e ir “para” o céu. O maldoso irá “para” o inferno. Onde, porém, ficam tais lugares se verdadeiramente existirem? Mas – ora, bolas! – “pensar é estar doente dos olhos”. E, neste mesmo instante, olho “para” fora de meu lugarzinho de escrever e vejo e ouço o que o pensamento não ouviu nem enxergou. Ter olhos e não querer ver, “para” quê, então, os ter? E ouvidos, ensurdecendo-se pela perda da sinfonia de árvores e brisas, abafada por ruídos de motores, de máquinas? “Para” quê, pois, ainda tê-los?
A perturbação maior, no entanto, continua nesse verdadeiro castigo que – desde a desobediência primeva – a tentação do conhecimento nos persegue. “Para” quê tanto desejar saber, entender, descobrir o que não é fundamental para viver o pouco tempo que temos no mundo? Se cientistas, muitas vezes, não sabem sequer o que está acontecendo em sua própria família, “para” quê essa aventura no espaço? Religiosos “para” quê tanto se preocuparem com Deus se não sabem amar quem está a seu lado? “Para” quê buscar tantas respostas no uso da razão, se está no coração a sabedoria do sentir? “Para” quê, pois, tal importância dar-se ao saber se é o sentir que nos traz tanto a alegria como a tristeza?
Há quem se pergunte o porquê de ter nascido. Ora, “para” quê tal ingratidão? Confesso também, já tê-lo feito. No fim da jornada, quero viver “para” tomar mais sorvete, “para” divertir-me como na infância. E, em especial, “para” pensar menos e “para” sentir mais.
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