ARTIGO

Se fosse no Brasil, teria virado Chico

Por Armando Alexandre dos Santos | 30/10/2023 | Tempo de leitura: 4 min

Manuel caminhava contente, por uma pedregosa estrada de Castilla-la-Vieja, bem no coração da Espanha. Saíra de sua aldeia e se dirigia a Zamora, cidade maior, para procurar o notário que faria o registro de um menino, do qual seria padrinho.

Os pais do menino eram seus conhecidos. De longa data. Deviam até ser primos, pois naquelas aldeolas todos os casamentos são realizados entre famílias conhecidas, em um inextricável novelo de parentescos, de tal forma que todos são primos e primas. O pai do menino o convidara para apadrinhar o recém-nascido. Pedira-lhe que, quando fosse à cidade, informasse o nascimento ao notário, para o registro. Registros civis eram coisa nova, o governo mandava fazer, era preciso obedecer. Antigamente, nascia-se, vivia-se e morria-se sem burocracias, mas agora, sin los papelitos, nada mais se fazia.

Quando o futuro compadre lhe fez o convite e o pedido, Manuel perguntou que nome devia dar ao afilhado. - Llámalo como tu - respondeu o pai, manifestando o desejo de que o menino tivesse o mesmo nome do padrinho.

Foi essa homenagem que alegrou a manhã de Manuel. Saiu, pois, cantarolando pela estrada rural que o conduzia à cidade. Era seu primeiro afilhado, havia porque alegrar-se. Tão alegre estava, ao chegar à cidade, que resolveu alegrar-se ainda mais. Como diz a Bíblia, “o vinho alegra o coração do justo”, e o justo Manuel, desejoso de se alegrar, foi direto para a taberna. Lá, entre copos de saboroso vinho da terra, entremeados com tapas fritas e trocitos de morcilla, deixou-se ficar, sem pressa, até o meio da tarde.

Foi só quando o sol já declinava que, de repente, lembrou-se do afilhado e da obrigação assumida de registrá-lo. E, bastante avinhado e excessivamente alegre, com passo não muito compassado e com rumo não muito arrumado dirigiu-se, como pôde, ao cartório. Lá chegando, o tabelião, que também era amigo e vagamente aparentado, serviu-lhe mais um copo de vinho e, juntos, saborearam um queijo caseiro acompanhado de um delicioso pão que, por coincidência, estava saindo do forno. Naturalmente, a alegria ficou ainda maior.

Já estava escurecendo quando, afinal, Manuel disse ao tabelião que viera registrar o filho do amigo Pedro Gómez, o ferrador da aldeia. O pai o convidara para padrinho, era ele que vinha fazer o registro.

- Sin ningun problema - respondeu o tabelião. Por supuesto que haré el registro. Pero, que nombre pongo al niño ese que nació?

- Nombre? Hay que ponerle nombre, hombre?

- Por supuesto, hay que ponerlo...

- Y no puedes dejar eso para después?

- Por supuesto que no, hombre. Como registrar a un niño sin nombre? El padre no te dijo como debía llamarse el hijo?

Então, no meio dos vapores etílicos que de todas as partes o envolviam, forçando bem a memória, Manuel tentou desesperadamente se lembrar do que lhe dissera o pai do menino. E somente então se recordou das palavras do compadre: - Llámalo como tu.

E, resoluto, declarou ao tabelião: - Llámalo como tu.

- Pues, así va bien. Va a tener un hermoso nombre.

E sapecou, no volumoso livro de registros, a informação de que viera ao mundo Francisco Gómez, filho de Pedro Gómez e Maria del Cármen Ríos, conforme declarações do padrinho Manuel Sánchez.

De posse da certidão, Manuel despediu-se do notário e retornou a sua aldeia. Pelo caminho, o ar fresco da noite, o aroma inconfundível das flores do campo e, sobretudo, o passar do tempo, foram exercendo em sua mente etilizada uma função clarificadora. Foi assim que, perfeitamente sóbrio, chegou a sua aldeia e entregou o papelito de registro ao pai, declarando que procedera conforme suas instruções. Eram ambos iletrados e não tinham como ler o que estava escrito no misterioso e prestigioso papelito, que ficou bem guardado, entre outros tesouros da família, na velha casa de pedras, que havia mais de 300 anos abrigava, do rigor do inverno e da inclemência dos verões, sucessivas gerações de robustos Gómez... Mais um copo de vinho, oferecido pelo compadre, encerrou a trabalhosa jornada do alegre padrinho.

O menino cresceu, fez-se homem. Foi sempre, em família, na aldeia e em todos os lugares, Manolito Gómez. O diminutivo Manolito era para distinguir do padrinho, conhecido como Manolo Sánchez. Foi só muitos anos depois, quando estava embarcando para o Brasil, terra de promissão que excitava a imaginação das sofridas populações rurais daquela Espanha ainda pouco desenvolvida, que Manolito soube... que não era Manolito. Ao apresentar, ao funcionário que devia fazer-lhe o passaporte, a certidão de nascimento, é que ficou sabendo que seu verdadeiro nome era Francisco.

Lá estava, bem claro e legível, o nome Francisco, sem a menor sombra de dúvidas. Como explicar o mistério? O pai e todos, na família, juravam que ele sempre fora Manuel e Manuel continuaria sendo, com ou sem papelito... Procurado o padrinho para esclarecer o caso, ele, muito embaraçado reafirmou que havia dito ao tabelião exatamente o que o pai mandara dizer. E o tabelião, quando procurado, declarou que se lembrava muito bem daquele registro. O primo Manolo lhe dissera com toda a segurança: - Llámalo como tu. E ele, naturalmente obedeceu.

Foi assim que Manolito ficou sabendo, aos 30 anos de idade, que não era Manuel, era Francisco. E, como todos os Franciscos da Espanha, virou Paco.

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