Soubesse, eu, fosse tão bom, ter-me-ia tornado ancião há mais tempo. Talvez, quando nos meus já distantes 40 anos. Não se trata – pelo menos, no caso do escriba – de adquirir sabedoria, que ela sempre nos escapa. Trata-se de esperteza. Ou de malandragem. Aliás, não seriam elas – malandragem e esperteza – irmãs xifópagas?
Cada vez mais intensamente, entendo como, ao longo da vida, vivemos de tanta hipocrisia. Pois, a sociedade que vimos construindo não suporta – ou não sabe como fazê-lo – a sinceridade dos corações. Civilizações são organizadas a partir de normas, de leis. E estas são sempre constituídas pelo pensamento de grupos dominantes. Já nos dissera o ainda tão temido Marx, ao propor um inviável mundo autoritário: “A cultura dominante é a cultura da classe dominante”. Verdadeiro isso é, mas ele idealizou outra inviabilidade: “a ditadura do proletariado”.
Que isso, porém, se deixe pra lá. Pois o que me encanta, agora, é a minha ancianidade, esse já ser idoso, ancião, o ter chegado à tal “idade avançada”. Ora, isso significa existência longa. E tão longa que me lembro até mesmo da primeira vez em que ouvi falar em “fim do mundo”. Foi ao lançamento da segunda bomba atômica em Nagazaki. Lá em 1945, ora, vejam! Mas o mundo não acabou. Tornamo-lo, apenas, mais complicado para nele se viver.
O fato é que, na verdade, viver tornou-se luta permanente para sobreviver. Até algumas décadas, o ser humano buscava o seu espaço, consciente do direito de tê-lo. A busca tornou-se disputa. E esta fez-se guerra. Pode-se, então, concluir ser, a racionalidade humana, algo doentio, herança dos hominídeos que se devoravam uns aos outros. Confesso, porém, nada saber. Como sempre. Pois, quando penso estranhar, lembro-me de, há mais de dois mil anos, o Filho do Homem ter-nos aconselhado friamente: “Sejam mansos como as pombas e espertos como as serpentes.”
Sabedoria, hipocrisia? Ou caminham juntas? Parece-me, ao final da caminhada, que, antes de mais nada, esse sobreviver humano é a grande arte. Pois, no circo da existência comum, há que se desempenhar os mais diferentes papéis. O de palhaço, por exemplo. Aquele que ri enquanto engole suas próprias lágrimas. E o de trapezista, sempre se equilibrando para não ser devorado pelo abismo. Por isso, penso eu, criaram-se os mosteiros, refúgios onde se pretendia isolar-se do mundo. Mas o problema continuou, acho. Pois, mesmo num mosteiro, duas ou mais pessoas muito juntas tornam-se promíscuas ou inimigas.
O irônico é que, por civilização, entende-se seja, também, a forma de vida mais elevada de um povo. Mas – diante de tantas divergências, de tantos conflitos, disputas, ódios – o que estaríamos, atualmente, entendendo por povo? Em sua origem, povo representava comunidade de comunhão de mesmos interesses, de aceitação das mesmas regrais legais, uma história, tradições. Por esse entendimento, quantos povos não estariam convivendo numa cidade como Piracicaba? Cada bairro não seria uma comunidade de interesses diferente da outra?
Divaguei. E deve ser consequência da perplexidade. O que vem acontecendo, para onde estamos sendo levados? Loucura? A ancianidade me orienta a deixar de fazer perguntas. E, então, usufruir o máximo possível do privilégio de ainda estar por aqui. Os dias deveriam ser os de render graças. Pois, se um mínimo de sabedoria ganharmos com a vida, essa está na capacidade de admiração. E quanto a admirar! A chegada da primavera é o aviso que a natureza nos dá de um eterno renascer. É o ciclo do mundo, da vida. Mas há quem esteja querendo morar em Marte!
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