ARTIGO

O traço e a intolerância

Por Edson Rontani Júnior | 12/09/2023 | Tempo de leitura: 4 min

Em conversa com Alceu Marozzi Righetto, lá pelos idos de 1989, me lembro dele comentando sobre a censura no Salão de Humor de Piracicaba. Fazia eu um trabalho sobre a repressão aos jornalistas para minha graduação em comunicação social. Righetto relatou, não me recordo ao certo se foi no Salão de Humor ou em outra exposição local, que um militar chegou a cobrir com fitas as “partes pudendas” de mulheres seminuas, como os seios à mostra. Isso em telas a óleo ou em cartazes feitos com nanquim. Na verdade, a “falta de pudor” nos salões de arte de Piracicaba espelha uma liberação sexual vivida a partir dos anos 60 e que foi reprimida pelos censores nos anos seguintes. Andar com calças rasgadas expondo partes das coxas, como nos dias atuais, era intolerável nos anos 1970.

Rubem Fonseca, na edição especial da centésima edição de “O Pasquim” discorria sobre o tema “palavrão não é pornografia”, comentando que, na literatura, pode-se utilizar palavras ditas “à boca suja”, incitando o ato sexual, sem que isso fosse uma ofensa moral, ou seja, nada a ver com a pornografia. Interpretações à parte ...

Anos atrás, o tema “Intolerância” foi escolhido como prêmio especial no Salão Internacional de Humor de Piracicaba com o objetivo de fazer um balanço sobre suas cinco décadas de vida. O tema foi escolhido em 2012. Cabe lembrar que o Salão surgiu como forma de arrancar a mordaça sobre as manifestações culturais, sociais e políticas das quais os brasileiros sofriam cada vez mais com a reprimenda militar. O Salão de Humor foi a ferramenta para que artistas se expressassem diante da ausência da liberdade na comunicação. Ao longo deste tempo, muitas charges e cartuns buscavam um segundo sentido sobre o que realmente queriam dizer seus autores. Poderia haver mais de uma interpretação sobre o mesmo desenho. “O rei estava vestido”, primeiro prêmio do Salão, desenhado em 1974 por Laerte, espelhava o conto de Hans Christian Andersen ou era uma crítica aos porões da ditadura ? Taí a dúbia interpretação ...

A inteligência peculiar do jornalista Gonçalo Júnior reuniu em 2004 um senhor livro lançado pela Companhia das Letras intitulado “A Guerra dos Gibis”, relatando a formação do mercado editorial brasileiro e a censura dos quadrinhos de 1933 a 1944. Ler quadrinhos, nos anos 40 e 50 causava doenças mentais, falta de evolução cerebral e atentava a moral e os bons costumes. Quadrinhos americanos incitavam a violência. Era o que diziam os órgãos reguladores dos EUA e seguidos também no Brasil. O relato de Gonçalo mostra a intolerância comercial com norte para formar leitores de desenhos em quadrinhos. Essa guerra de gibis foi travada por Roberto Marinho e Adolfo Aizen, antigos amigos e ferozes concorrentes através de O Globo e da EBAL (Editora Brasil América Ltda.). Além disso, mostra o caminho seguido pelo mercado editorial para se adequar às regras sociais dos bons costumes com publicações como “História Sagrada” e “História Monumental”, e outros ícones ufanistas da EBAL. Aí é que surgem valores nacionais como Maurício de Sousa (com a HQ “Bidu”), Ziraldo (com “Saci Pererê”), Max Yantok, Jayme Cortez e tantos outros. Fizeram estes o quadrinho acadêmico, depois contestado por vanguardistas como Millor, Glauco Rodrigues, Watson Portela, Gedeone Malagola...

Em 1969 surge “O Pasquim”, grande opositor ao regime militar. A vanguarda do humor se instala mesmo com a ação dos censores, que buscavam mais que “partes pudendas” nas páginas do semanário. “O Pasquim” foi a base para que jovens piracicabanos criassem na cidade um salão pioneiro no país cujo negro do nanquim contestava a ordem social estabelecida. Carlos Colonnese, Righetto, Fagundinho, Fausto Longo e Adolpho Queiróz deram a cara para bater. Tiveram ajuda de muitos outros ... Nardin, Cerinha, Cecílio ... Conseguiram. Enfrentaram a intolerância política com muita seriedade, transformando o Salão de Humor na casa da expressão do brasileiro e, depois, do mundo.

Na abertura da exposição paralela “Pamonhas”, realizada uma semana atrás na Biblioteca Municipal, Fábio San Juan, organizador junto a Erasmo Spadotto e Eduardo Grosso, comentou sobre a história do cartum na cidade, sendo que um dos primeiros registros na imprensa local é de 1917, de Otávio Prates, impresso nas páginas deste Jornal de Piracicaba. San Juan lembrava que cartuns e charges estavam sempre na berlinda. Surgiram em ambientes exclusivamente masculinos como barbearias. A expressão da arte tomava as paredes não apenas no local de trabalho de barbeiros e sim em bares, casas de apostas, recintos frequentados dos por homens, possivelmente por sua contestação social, conforme descrito anteriormente. Um pré-conceito inabalável.

Nada mais justo que escolher “Intolerância” como o tema especial. Afinal, Piracicaba tem de prezar em ser intolerante é com ... o mau humor !

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