Há muitos anos acompanhei uma polêmica travada entre duas pessoas, uma das quais, no empenho de desacreditar a outra, citou entre aspas palavras escritas pela oponente. Defendendo-se, a parte atacada declarou que haviam “tirado o texto do contexto, para usar como pretexto”.
Nunca esqueci essa combinação das três palavras. Um texto tomado isoladamente do seu contexto pode muitas vezes não ser bem entendido, pode ser interpretado diferentemente do que foi intenção do emissor. E pode ser manipulado por um adversário mal intencionado, que o usa como pretexto para seus fins dialéticos e/ou polêmicos.
No dia 15 de março de 1990, Fernando Collor de Mello assumiu a presidência da República e nomeou, para comandar a economia brasileira, a ministra Zélia Cardoso de Mello. No dia imediato à posse, promulgou o chamado Plano Collor, que deveria, teoricamente, ter acabado com a inflação galopante que assolava o País. Foram repentinamente “congeladas” as contas correntes e de poupança dos brasileiros, ficando cada uma delas apenas com a quantia bem modesta de 50 mil cruzados novos disponíveis. Ao mesmo tempo, foi criado um novo padrão monetário, com a extinção dos “cruzados novos” e o reaparecimento do “cruzeiro”. Essas medidas abalaram profundamente o país, entrando em pânico os meios empresariais e financeiros. A reação das bolsas foi imediata e muita gente rica se viu, de repente, reduzida à condição de “classe média bem baixa”. Lembro de uma pessoa que havia vendido um apartamento na semana anterior e tinha recusado receber o pagamento em dólares, preferindo receber em dinheiro brasileiro para aplicar tudo em bancos, no chamado overnight. Perdeu tudo, ou quase tudo, da noite para o dia.
Criticou-se muito a deslealdade de procedimento da nova equipe governamental. 3 ou 4 dias antes de Collor tomar posse, Zélia, que já estava indigitada para ministra e já conhecia sigilosamente o pacote econômico que seria lançado, foi numa entrevista pública questionada sobre se havia alguma possibilidade de ocorrer no Brasil uma forma de confisco de poupanças, como tinha havido anteriormente na Argentina. A futura ministra, para evitar uma corrida aos bancos, mentiu deslavadamente e declarou solenemente: podem deixar seu dinheiro nas poupanças, porque eu mesma, se tivesse dinheiro, era lá que deixaria o meu...
Diante do mercado em pânico, era preciso acalmá-lo. Foi combinado, então, um almoço de empresários do Brasil inteiro com a ministra Zélia. Cada participante devia pagar uma quantia muito elevada para ter o privilégio de comparecer ao seleto e exclusivíssimo repasto. Se não me falha a memória, era o equivalente a quase um terço do que cada conta bancária ou caderneta de poupança pudera conservar.
Na hora em que estavam todos reunidos para iniciar o almoço, foi anunciado que a ministra não poderia comparecer, porque estava com a agenda sobrecarregada, mas que um assessor qualificado dela a substituiria e daria todos os esclarecimentos pedidos pelos “almoçantes”. Compreende-se a decepção e a revolta dos presentes. Muitos deles, indignados, protestaram em altos brados e exigiram a imediata devolução dos cheques que tinham passado. Como eram muitos os “protestantes”, foi organizada uma fila enorme e cada um foi pegando de volta seu cheque e ia saindo... em jejum!
Precisamente no dia seguinte, foram lançadas no mercado brasileiro as novas notas de dinheiro, com o novo padrão monetário (o ressuscitado cruzeiro) em lugar do defunto cruzado novo. Nas novas notas, não mais eram impressas figuras de personagens da História do Brasil, mas nelas aparecia a imagem da chamada “Marianne”, a mulher que simboliza a república francesa e de modo geral as demais repúblicas do mundo.
Aconteceu então uma coisa muito engraçada: a mulher que figurava nas notas como "Marianne" tinha alguma semelhança fisionômica com a ministra Zélia. Obviamente, isso deu em piada... Começaram a dizer que, na véspera, Zélia não foi ao almoço dos empresários porque ficara posando para o desenhista da nota.
Um jornal paulistano publicou então uma charge engraçadíssima, com dois desenhos e, separando-os, duas palavrinhas apenas. As palavrinhas eram: “Enquanto isso...”. Essa locução adverbial de tempo, seguida de reticências, era perfeitamente incompreensível se desacompanhada dos quadrinhos, E sobretudo o era sem todo o contexto vivido pelo Brasil inteiro naquela situação.
No primeiro dos quadrinhos, aparecia uma fila enorme de senhores furiosos, vestidos com casaca, fumando charutos e com suas cartolas na mão com a abertura para cima, na posição clássica de quem pede esmola. No quadrinho seguinte, depois do “Enquanto isso...”, uma cena completamente diferente: a ministra Zélia, estendida languidamente sobre um sofá, posava como modelo para um artista, o qual tinha diante de si uma tela com o desenho e os contornos da nova nota de um cruzeiro e, bem no centro, reproduzia com seu pincel a cara da ministra.
Na época, todo mundo entendeu e todo mundo deu boas risadas. Por quê? Porque todos conheciam o contexto da charge. Alguns meses depois, o episódio já estava esquecido e aquelas imagens tão vivas e espirituosas pareceriam incompreensíveis e não teriam a menor graça. Era o conhecimento do contexto que tornava possível a compreensão da charge.
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