ARTIGO

É só uma estátua?

Por Rubinho Vitti | 14/08/2023 | Tempo de leitura: 3 min

Um dos pontos turísticos mais visitados de Dublin é a estátua de Molly Malone, uma personagem lendária da história da capital da Irlanda. A figura foi reproduzida em 1988 em uma escultura de bronze, usando roupas de época e segurando um carrinho com cestos e mercadorias.

Sua feição é neutra, mas, olhando de perto, ela parece estar triste. Seu vestido longo, bem ao estilo das plebéias do século 17, tem um profundo decote, que deixa à mostra parte dos seios.

Ao longo dos anos, criou-se uma fantasiosa tradição de que, ao tocar nos seios da estátua de bronze, ela lhe trará sorte.

A obra tem sido assunto de articulistas que questionam essa “tradição”. Afinal, quem criou essa balela turística e por que, em pleno 2023, ela ainda é seguida por centenas de milhares de turistas que passam pela estátua, todos os anos, sem questioná-la?

Molly Malone, personagem icônica do folclore irlandês, é um mistério. Afinal, não dá para dizer certamente se ela de fato existiu. Ela aparece em citações literárias e em uma música que leva seu nome e foi imortalizada pela banda The Dubliners, cantada até hoje pelos pubs da capital irlandesa.

Na letra, Molly é uma linda mulher, vendedora ambulante de peixes, que morre de febre, mas sua alma continua perambulando pelas ruas da cidade.

Existe uma certa convenção turística em todo o mundo em relação a obras populares feitas de bronze onde, ao tocar certa parte da escultura, isso lhe dará sorte.

Na escócia, esfregar o focinho da estátua do lendário cão Bobby é uma dessas tradições. Em Florença, quem passa pelo javali Porcellino também precisa tocar seu focinho e jogar uma moedinha para dar sorte.

Mas outras estátuas ganharam notoriedade pela polêmica, como na França. A estátua do jornalista político Victor Noir ganhou uma tradição bizarra, onde esfregar as partes íntimas da figura traria sorte no amor.

Já em Verona, a personagem Julieta, da obra Romeu e Julieta, de William Shakespeare, também sofre, todos os dias, os abusos de turistas.

Com uma conscientização social cada vez maior sobre abusos contra as mulheres, esse tipo de tradição, de tocar partes íntimas de figuras femininas – mesmo as que existem apenas na nossa imaginação – não é algo bacana de se fazer, não é mesmo?

Mas em Dublin, todos os dias, centenas de turistas esfregam suas mãos nos seios da estátua de Molly, parte da escultura que já está até com o bronze desgastado.

Em um artigo para o jornal Irish Times, Maura O'Neill escreveu que gostaria de “incluir Molly Malone no atual movimento contra o assédio sexual”, questionando por que a personagem deve ser “submetida a gestos indignos e desrespeitosos” todos os dias.

Em outro artigo no mesmo jornal, Bernice Harrison destacou que guias turísticos locais incentivam os turistas a tocarem os seios da estátua. Ela também explica que não existe uma fonte exata sobre quando isso começou – e a sugestão mais indicada é que partiu exatamente da indústria do turismo, por volta de 2014.

Nesta semana, fiquei cerca de dez minutos observando a estátua. Turistas homens, adolescentes, geralmente, não apenas esfregavam suas mãos nos seios da estátua de Molly, mas o faziam zombando da figura feminina.

Outros pareciam tocar, “com respeito”, apenas para testar se de fato terão sorte após o ato. Foi difícil ver pais incentivando seus filhos pequenos a tirar fotos com as mãos nos seios da estátua.

Aqui faço um mea culpa, já que eu mesmo já toquei os seios da estátua de Molly Malone na onda do “todo mundo faz, eu vou fazer”.

Mas confesso que hoje, depois de entender mais sobre toda essa história, eu não faria novamente.

Afinal, aquela obra não é só mais uma estátua, mas parte de uma personagem forte do folclore irlandês e uma representação feminina de fato.

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