A Suíça não é um país que se tenha destacado na produção de grandes atores e atrizes. Na verdade, bem poucos helvéticos se tornaram internacionalmente célebres por sua atuação nos teatros ou nas telas de cinema.
Um desses poucos é, sem a menor dúvida, Bruno Ganz, nascido em Zurique, em 1941, e falecido no mesmo cantão suíço em 2019. Desde a década de 1960 desenvolveu uma carreira ascensional, na televisão e no cinema, tornando-se famoso em todo o mundo. Um dos últimos personagens que representou, e por certo aquele que mais marcou a sua carreira, foi o de Adolf Hitler, no filme “A Queda”, dirigido por Oliver Hirschbiegel e lançado ao público em 2004.
Costuma-se dizer, nos meios teatrais e cinematográficos, que os papéis mais difíceis de interpretar são os de personagens “bonzinhos”; de um modo geral, personagens de bandidos ou vilões são mais facilmente interpretáveis, porque sempre é mais fácil imitar o mal do que o bem, o vício do que a virtude.
No caso concreto de Bruno Ganz, o papel de Hitler parece ter sido o mais difícil de sua carreira, devido à altíssima carga emocional que cerca a pessoa e a memória do personagem histórico.
“Eu tive algumas dúvidas quando me ofereceram o papel de Hitler. Eu me perguntei se eu realmente queria me envolver com essa figura horrenda e terrível. Mas também foi uma tentação, pois o assunto tem um lado fascinante, então eu concordei.” - declarou Ganz à imprensa britânica.
Durante meses, ele estudou detidamente o personagem, a partir de filmes antigos e de gravações de discursos seus. O tom de sua voz, o metálico e o eletrizante de sua entonação, até o tremor nervoso e parksoniano de suas mãos, tudo foi estudado e imitado na perfeição pelo ator.
O roteirista do filme, Bernd Eichinger, baseou-se no livro “Der Untergang: Hitler und das Ende des Dritten Reiches” (A Queda: Hitler e o fim do Terceiro Reich), escrito pelo historiador Joachim Fest. O título e o subtítulo dessa obra foram adotados pelo filme. O roteirista serviu-se também de relatos extraídos das memórias de Traudl Junge, uma das secretárias particulares de Hitler.
O sucesso do filme foi imediato. Meio milhão de pessoas o assistiram na semana do lançamento; em três meses, 4,5 milhões de ingressos já tinham sido vendidos. Nos Estados Unidos, tornou-se o 4º filme com maior rendimento de bilheteria em toda a história do cinema. Indicado para o Oscar, na categoria de melhor filme estrangeiro, não alcançou obter o primeiro lugar, mas recebeu outros prêmios muito expressivos e foi incorporado à lista dos 100 melhores filmes de todos os tempos.
Assisti duas vezes a esse filme, a primeira vez quando foi colocado nas locadoras e, depois, para fazer uma análise mais acurada dele. É um filme sinistro, pavoroso, faz mal ao expectador. Mas precisa ser visto e analisado.
Trata-se de uma recomposição das últimas horas do bunker berlinense de Hitler.
A Guerra já estava de há muito perdida pela Alemanha (no meu modo de entender, desde 1941, quando do fracasso da missão Rudolf Hess na Escócia). Os russos já estavam dentro da cidade, disputando terreno com os últimos focos de resistência dos alemães. O ambiente psicológico daquela fase é muito bem apresentado no filme.
A loucura paranoica e o total alheamento da realidade, por parte de Hitler; os contrastes e paradoxos de sua “criminal mind”, ao mesmo tempo capaz de manifestações de frieza e crueldade e de momentos episódicos de ternura quase lírica; o desconcerto dos oficiais de seu estado maior, que viam as loucuras do Führer, mas achavam-se presos pelo juramento de fidelidade incondicional prestado a ele; o contraste entre o ambiente de aparente normalidade, das refeições e festinhas ocorridas no bunker, com as cenas de fim-de-guerra externas; o poder hipnótico e fanatizante que Hitler exercia sobre as pessoas, levando-as a atitudes desatinadas; o fanatismo de muitas pessoas que, contra toda a evidência, ainda criam no ditador e preferiam morrer com ele a deixá-lo; o oportunismo, a politicagem e as rivalidades que envolviam pessoas da entourage do líder todo-poderoso - tudo isso fica muito claro no filme.
É um filme com enredo pobre; é mais bem um documentário. Mas é um filme a que assistimos com interesse crescente, sem nos desviarmos um minuto do fio condutor de sua envolvente trama.
A cena mais impressionante e perturbadora é, sem dúvida, a da Sra. Goebbels matando um a um seus seis filhos, antes de se suicidar juntamente com o marido. É algo, realmente, assustador.
Bruno Ganz foi magistral no seu desempenho. Mereceria, sem sombra de dúvida, o Oscar de melhor ator. O filme foi muito criticado porque, segundo alguns, mostraria um lado humano e carinhoso de Hitler, o que seria propagandístico para sua odiada figura. Sinceramente, não julgo procedente essa crítica. A meu ver, as episódicas cenas de “ternura quase lírica”, como escrevi acima, somente realçam, pela força do contraste, a monstruosidade satânica do personagem. Acredito que tenha sido por causa dessas críticas que o filme não levou o Oscar, a meu ver injustamente.
Repito: é filme perturbador e sinistro, mas precisa ser visto.
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