Entrou no consultório trazendo os resultados de exames de sangue e, antes de a mim os entregar, mostrou outro envelope com uma folha amarelada pelo tempo — guardada há mais de 15 anos. Com letra feminina caprichada, lia-se: “Querido vovô. Queremos que você pare de fumar para não ficar doente. Com muito carinho e muitos beijos da Giovanna e da Luzia”. As autoras zelosas eram a neta mais nova e a falecida esposa do meu paciente, Sr. Antonio Roberto P. Gonçalves. Fumante, Luzia resolveu parar com os cigarros quando a primeira neta, Laura, nasceu. Antonio, no entanto, não conseguiu acompanhá-la. Sempre às voltas com as meninas, conviveram de perto. Gostavam de brincar de sapataria no quarto do avô. Dispunham, alinhadas, as peças. Marcavam-lhes o valor, registravam a compra e embrulhavam as “mercadorias” num jornal. Tinham, no avô, seu principal “cliente”.
Entre tantas brincadeiras de criança, quem se lembra dos famosos cigarrinhos de chocolate PAN, que toda criança adorava comer décadas atrás? Sua embalagem lembrava um maço de cigarros e trazia a foto de meninos em pose que aludia ao ato de fumar. Sucesso entre meninos e meninas, mais do que saborear o doce, a alegria da garotada consistia, em sua fértil imaginação, em poder fazer algo proibido na vida real. Brincavam de imitar as elegantes e sofisticadas poses dos adultos tabagistas.
Mais do que uma inocente brincadeira, os doces podiam estimular, nos pequenos, a ideia de fumar. Objetivando a proteção das crianças e dos adolescentes, a ANVISA — Agência Nacional de Vigilância Sanitária —, em 2002, proibiu alimentos e produtos com apresentação semelhante a cigarros ou a similares.
Nota-se a preocupação em proteger as crianças da iniciação ao tabagismo desde muito antes. O Ministério da Saúde, em 1988, determinara que, em todos os maços de cigarros, fossem incluídas advertências sobre os riscos que causavam à saúde. Inclusive, uma delas dizia assim: “O Ministério da Saúde adverte: crianças começam a fumar ao verem adultos fumando”.
Antonio Roberto, piracicabano da Vila Rezende, nasceu na década de 1950. Aos 12 anos, após a escola, começara a trabalhar na fábrica de vassouras CEGA. Numa ocasião, um amigo deu-lhe cigarros “Negritos” para experimentar. O maço, nas cores marrom e amarelo, exalava odor agradável — os cigarros tinham o sabor de chocolate. Logo percebeu que se viciara neles.
Uma resolução da ANVISA que proibia o uso de aditivos de sabor nos cigarros — a RDC 14/12 — finalmente começou a ser implementada somente 10 anos após. Desde 2012, quando foi publicada, os fabricantes de cigarros batalharam na justiça para que a resolução não fosse aplicada e pudessem seguir vendendo cigarros saborizados — estratégia notadamente utilizada para deixar seus produtos mais palatáveis e atraentes, especialmente para os jovens. Impedir o uso de aditivos de sabor tornara-se medida essencial para prevenir a iniciação ao tabagismo.
Mais velho, Antonio Roberto prestou o concurso para a Guarda Civil depois de ter passado por muitos empregos, entre eles, o de torneiro mecânico, por 8 anos, numa das metalúrgicas da cidade. Dentro da viatura, não fumava. Considerava falta de respeito com o colega de carona. Gostava de correr atrás dos bandidos, de recuperar os produtos do roubo e de ajudar a população. Por diversas vezes, auxiliou no socorro de enfermos ao hospital.
Contou que acompanha, nos jornais, as publicações das minhas crônicas, inspiradas em histórias de tabagistas e ex-tabagistas. Orgulhoso de ter abandonado o vício, fez questão de mostrar aquilo que o motivou a parar de fumar. Em 2008, após sofrer infarto, realizar cateterismo e implantar “stents” coronários, encontrou, na gaveta de casa, a cartinha com o pedido sincero e cheio de afeto. Desde então, largara os cigarros.
--------------
Os artigos publicados no Jornal de Piracicaba não refletem, necessariamente, a opinião do veículo. Os textos são de responsabilidade de seus respectivos autores.