ARTIGO

As últimas vontades de Caxias

Por Armando Alexandre dos Santos |
| Tempo de leitura: 4 min

São designados como “culturalistas” os historiadores filiados à corrente historiográfica desenvolvida nas últimas décadas do século XX, a partir da 3ª. geração da Escola dos Annales. Essa corrente amplia o horizonte de suas análises sobre o conjunto de fatores que genericamente se entendem como culturais, recusando o reducionismo economicista dos historiadores de influência marxista mais estrita. Ainda se nota em muitos culturalistas, como Jacques Le Goff e Georges Duby, considerável influência do marxismo em que foram formados, mas sem dúvida neles prevaleceu uma liberdade de análise e um senso crítico que abriram largamente seus horizontes.

Entre os culturalistas, verifica-se um particular interesse sobre o estudo dos rituais que tradicionalmente acompanham a inevitável transição pela qual passamos nós todos, mortais, desta vida terrena, material e temporal para outra esfera, atemporal e mais espiritualizada. Os testamentos e manifestações de últimas vontades são estudados, atualmente, como fontes históricas privilegiadas, pois permitem compreender aspectos muito interessantes das realidades humanas e sociais. Para citar apenas duas fontes, veja-se o primoroso livro de Philippe Ariès “História da morte no Ocidente desde a Idade Média” (Lisboa: Teorema, 1988); e também a obra coletiva “O reino dos mortos na Idade Média peninsular” (Lisboa: Sá da Costa, 1996), organizada pelo grande medievalista português José Mattoso, que faleceu aos 90 anos de idade no início do corrente mês de julho.

Vou transcrever aqui, como curiosidade, o testamento escrito pelo Duque de Caxias, o grande patrono do Exército brasileiro, que consolidou a unidade territorial do Brasil no conturbado período da Regência, e foi chefe de armas vitorioso nas várias guerras que o Império precisou enfrentar no Uruguai, na Argentina e, sobretudo, no Paraguai. Sua espada, conservada na Academia Militar de Agulhas Negras, é até hoje objeto de culto cívico e particular veneração pelos oficiais que, a cada ano, saem daquela Academia. Cada um deles conserva uma miniatura dessa espada tão carregada de simbolismo, como lembrança da formatura. É o seguinte o teor do documento manuscrito:

“Em nome de Deus. Amém. Eu, Luís Alves de Lima, Duque de Caxias, achando-me com saúde e meu perfeito juízo, ordeno o meu testamento, da maneira seguinte: sou católico romano, tenho nesta fé vivido, e pretendo morrer.

“Sou natural do Rio de Janeiro, batizado na freguesia de Inhamerim; filho legítimo do Marechal Francisco de Lima e Silva, e de sua legítima Mulher, dona Mariana Cândida Bello de Lima, ambos já falecidos. Fui casado à face da Igreja com a virtuosa dona Ana Luiza Carneiro Viana de Lima, Duquesa de Caxias, já falecida, de cujo matrimônio restam dois filhos que são Luiza e Ana, as quais se acham casadas; a primeira com Francisco Nicolas Carneiro Nogueira da Gama, e a segunda, com Manoel Carneiro da Silva, as quais são as minhas legítimas herdeiras. Declaro que nomeio meus testamenteiros, em 1º lugar, o meu genro Francisco Nicolas, em 2º meu genro Manoel Carneiro, em 3º meu irmão e amigo, o Visconde de Tocantins, e lhes rogo que aceitem esta testamentária, da qual só darão contas no fim de dois anos. Recomendo a estes que quero que meu enterro seja feito, sem pompa alguma, e só como irmão da Cruz dos Militares, no grau que ali tenho. Dispensando o estado da Casa Imperial, que se costuma a mandar aos que exercem o cargo que tenho. Não desejo mesmo, que se façam convites para o meu enterro, porque os meus amigos que me quiserem fazer este favor, não precisam dessa formalidade e muito menos consintam os meus filhos que eu seja embalsamado.  Logo que eu falecer deve o meu testamenteiro fazer saber ao Quartel General, e ao ministro da Guerra que dispenso as honras fúnebres que me pertencem como Marechal do Exército e que só desejo que me mandem seis soldados, escolhidos dos mais antigos, e melhor conduta, dos corpos da Guarnição, para pegar as argolas do meu caixão, a cada um dos quais o meu testamenteiro, no fim do enterro, dará 30 mil réis de gratificação.

“Declaro que deixo ao meu criado, Luiz Alves, 400 mil réis e toda a roupa do meu uso. Deixo ao meu amigo e companheiro de trabalho, João de Souza da Fonseca Costa, como sinal de lembrança, todas as minhas armas, inclusive a espada com que comandei, seis vezes, em campanha, e o cavalo de minha montaria, arreado com os arreios melhores que tiver na ocasião da minha morte. Deixo à minha irmã, a Baronesa de Suruí, as minhas condecorações de brilhantes da Ordem de Pedro I, como sinal de lembrança, e a meu irmão, o Visconde de Tocantins, meu candeeiro de prata, que herdei do meu pai. Deixo meu relógio de ouro com a competente corrente ao Capitão Salustiano de Barros Albuquerque, também como lembrança pela lealdade com que tem me servido como amanuense. Deixo à minha afilhada Ana Eulália de Noronha, casada com o Capitão Noronha, 2 contos de réis. Cumpridas estas disposições, que deverão sair da minha terça, tudo o mais que possuo será repartido com as minhas duas filhas Ana e Luiza, acima declaradas.

“Mais nada tendo a dispor, dou por findo o meu testamento, rogando às justiças do país que o façam cumprir, por ser esta a minha última vontade escrita por mim e assinada. Rio de Janeiro, 23 de Abril de 1874 a) Luís Alves de Lima, Duque de Caxias”.

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