ARTIGO

Cinesíforos, escaparates e anidropodotecas

Por Armando Alexandre dos Santos | 10/07/2023 | Tempo de leitura: 4 min

Nos cursos de Letras, costuma-se apresentar aos alunos, como inevitavelmente opostas, duas abordagens pedagógicas para o ensino do português. Uma seria a vertente “formalista”, que privilegia as regras gramaticais, e outra seria a “funcionalista”, mais preocupada com a comunicação humana do que com a observância das normas gramaticais.

Minha opinião é que devemos rejeitar a escolha forçada entre essas duas visões, com as decorrentes abordagens pedagógicas. Entre a visão formalista e "gramatical" e a visão funcionalista, prática e comunicativa da língua, não deve haver oposição, mas colaboração.

O desafio do professor, ou da professora, é mostrar aos alunos que a gramática formal não é um obstáculo, mas uma ajuda para a comunicação - e, portanto, para a Língua. As regras linguísticas, uma vez compreendidas e assimiladas, se transformam em poderosas ajudas para o falante (ou escrevente) da língua. É mais ou menos como o uso de talheres para comer. Uma pessoa que nunca tenha usado talheres na vida pode, claro, achá-los incômodos e muito pouco práticos. Mais fácil lhe parece comer com os dedos, ou amassando com as mãos bolinhas de alimento e lançando-as à boca - como faziam os índios, para grande espanto dos primeiros europeus que aqui chegaram. Mas para quem se habitou a servir-se de talheres, incômodo e pouco prático seria ter que saborear uma feijoada sem talheres...

Outra oposição que, de acordo com meu modo de pensar, deve ser evitada é entre a "linguagem culta" (observadora das regras gramaticais) e a "linguagem popular" (que se entende como ignorando e/ou desrespeitando as normas da gramática). Conheci, no sertão da Bahia e em aldeias de Portugal, muita gente analfabeta, mas que falava com correção gramatical perfeita, conjugando bem os verbos e não omitindo os SS dos plurais nem os RR dos verbos no infinitivo - como hoje se entende próprio da linguagem popular. Minha avó era uma camponesa muito simples, nascida em 1880 na Ilha da Madeira, e tinha apenas estudos rudimentares. Nunca foi a escolas ou faculdades, somente teve uma mestra de primeiras letras. No entanto, falava e escrevia com absoluta correção gramatical e fazia questão de corrigir os netos quando estes cometiam algum erro linguístico.

A meu ver, o que atrapalha muito o ensino da língua e dificulta o trabalho dos professores é o péssimo serviço prestado pelas emissoras de rádio e televisão, que com o pretexto de "atingir o povão" divulgam formas gramaticais erradas. Com isso, aumentam o desnecessário fosso entre o "popular" e o "erudito" e forçam o “povão” a ficar irremediavelmente condenado a falar uma língua diferente as classes mais elevadas. Se rádios e TVs fossem obrigadas a usar, pelo menos nos noticiários, um português gramaticalmente correto, todo o nível de correção gramatical e linguístico da população subiria. Nos países hispano-americanos existem variantes regionais, mas todos admitem um padrão ideal para a língua e todos incentivam, nas escolas, os alunos a se alçarem até esse padrão. Nas rádios e televisões só são admitidos locutores que falam de modo correto o idioma, respeitando as normas gramaticais e evitando gírias e até mesmo neologismos. Não creio que um sistema tão rígido possa ser implantado artificialmente no Brasil. Mas, pergunto: não podíamos em alguma medida fazer alguma coisa nesse sentido?

Há alguns anos foi proposto, no Congresso, um projeto de lei (se não me engano por iniciativa do Deputado Aldo Rebelo) que proibia a utilização de palavras estrangeiras em propagandas, quando houvesse sinônimos perfeitos em língua portuguesa. O projeto não foi adiante e foi muito ridicularizado; o deputado chegou a ser apelidado como "Policarpo Quaresma". E continuamos a  ver em todas as partes, a torto e direito, "delivery", "free", "stop", “coffee breaks” etc. etc. E chegamos a usar, como naturais e aceitáveis, imitações ridículas do inglês. O terminal rodoviário de São Paulo adotou o nome oficial de "Tietê Station Center"!... Depois, quando turistas estrangeiros fazem piada sobre o Brasil, nós reclamamos...

Durante muito tempo se usou no Brasil a palavra francesa “chauffeur”, para designar os condutores de veículos motorizados; chegou-se a aportuguesá-la para “chofer”; os puristas pretendiam substituí-la por “cinesíforo”, termo um tanto preciosista e até pernóstico. Acabou prevalecendo e consagrando-se entre nós a palavra motorista.

Penso que em matéria de estrangeirismos deve haver bom senso. Nem podemos vetá-los sumariamente, por mal entendido patriotismo linguístico, mas também não podemos adotá-los de modo impensado. Há expressões estrangeiras e palavras alienígenas que se adequaram bem ao nosso idioma e o enriqueceram. Não podemos mais substituir “vitrinas”, de origem francesa, por escaparates ou montras. Não podemos falar de campeonatos de ludopédio, uma vez que o termo “futebol”, de origem britânica, já está consagrado.

Creio que os mais jovens nem sabem o que eram as galochas, aquelas capas de borracha usadas antigamente em dias de chuva, para não estragar os sapatos de couro. Cheguei a usá-las quando criança. O termo era de origem francesa, mas os puristas queriam substituí-lo por “anidropodotecas”. Não “pegou”. As galochas desapareceram, mas os “chatos de galocha”, como se diz correntemente, continuam vivos e ativos.

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