“Eu já fui muito humilhada, vim dar minha resposta agora.
Entreguei na mão de Deus e também de Nossa Senhora.
Quem humilhar será humilhado, a eu venci minha vitória.”
(Anecide Toledo)
Conheci Dona Anecide Toledo mais de perto em 2015, quando tive a oportunidade de integrar o grupo de pesquisadores do Instituto Federal, campus Capivari, sob a coordenação da professora Maria Amélia Ferraciú Pagotto, que estava desenvolvendo o projeto de Extensão Batuque de Umbigada: ritmo, história, memória, resistência e identidade cultural. Na ocasião, tive o privilégio de conviver mais intensamente com Dona Anecide. Na intimidade de sua casa, pude ouvir atentamente suas fascinantes histórias, reveladoras de uma trajetória marcada por tantas superações.
O Batuque de Umbigada remonta a tradições oriundas de uma ancestralidade africana. É no solo de mãe África que encontramos as raízes remotas dessa dança ritual, a cultuar a fecundidade e a fertilidade. Preservado por comunidades afrodescendentes, o Batuque de Umbigada é também fruto de um rico e belo processo de sincretismo cultural a aglutinar múltiplas contribuições, moldando a cultura brasileira, em séculos de escravidão, diáspora, resistência e construção identitária.
A tradição do Batuque de Umbigada descortina-se como uma autêntica manifestação cultural, com sua cadência rítmica caracterizada pelo som do tambú, com a sua dança embalada por um vai e vem com conotação espiritual, compondo a umbigada e com a contundência de suas letras, poemas, modas a entoarem densas representações existenciais. Em uma roda de Batuque de Umbigada, expressivos elementos simbólicos são projetados, em uma polissemia de metáforas vivas.
Aprendi com a Mestre Anecide que cada moda, com sua profundidade rara, compõe-se como um tecer de memórias, de percepções sobre a existência, de narrativas do cotidiano, de afirmação de identidade. Certa vez, Anecide confidenciou-me que havia perdido seu caderno, com suas composições do Batuque, lá no Clube Treze de Maia, em Piracicaba. Mas logo me tranquilizou, dizendo que guardava todas as suas modas na memória.
No verso em destaque tive a alegria de acompanhar a hermenêutica articulada pela própria Anecida, que fez das modas do Batuque um lugar de denúncia, em forma de crônica e desabafo, sobre situações limites de opressão. O Batuque de Umbigada descortina-se, então, como espaço de resistência e afirmação identitária. A resposta a toda humilhação, decorrente de práticas históricas de racismo e de subjugação por meio da pobreza e da injustiça social, é concedida diretamente, em tom escatológico, mediante a força dignificante do Batuque.
No Batuque de Umbigada, em um vivo diálogo com as experiências cotidianas, ecoa a voz de tantas tradições silenciadas. Trajetórias passam a ser entoadas, em uma hermenêutica existencial demarcada pelo repique do tambú, no vai e vem de cada dança, no encontro simbólico entre umbigos. Se o umbigo é a representação do centro do mundo, da essencialidade e fecundidade da vida – como ensina inclusive a cultura Banto –, o movimento do Batuque de Umbigada não deixa de ser uma resposta icônica a todas as forças que negam a vida como arte, como devir, como possibilidade aberta.
Há uma liturgia profunda, a envolver todas as dimensões do Batuque de Umbigada. Sua linguagem ritual é permeada por metáforas, a contemplarem aspectos essenciais do humano. A vida de Anecide Toledo, dama maior do Batuque de Umbigada de Capivari, está eternizada em cada moda, entoada em uma roda de Batuque, sob a cadência do repique sagrado do tambú.
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