A tarde vinha quente e ensolarada no verão de 1975. A estrada de pista simples ligava a cidade de Matão a Araraquara.
O Opala cor de laranja, recém-tirado da concessionária para a longa viagem, levava, como ocupantes, 5 saltinhenses — o Sr. Pascoal Lissi, de 62 anos, seu advogado, um amigo, o filho mais velho e o genro. Na mala, algumas mudas de roupa e o contrato assinado da compra da fazenda em Rio Verde, Goiás.
No sentido oposto, dois caminhões realizavam uma ultrapassagem. Percebia-se que a distância calculada não fora segura. Então, a tragédia ocorreu. O Opala colidiu frontalmente e todos os seus ocupantes morreram no local. Com eles, também faleceu o sonho do agricultor empreendedor.
Como decorrência, Cecílio Lissi, então com apenas 18 anos, tornou-se o homem da casa e, como tal, responsável pelo provento da mãe, das irmãs e dos sobrinhos pequenos.
Nascera em Saltinho, interior de São Paulo, no sítio da família. Muito pequeno, com 4 ou 5 anos, ainda no colo do pai, experimentava os cigarros que este lhe dava para fumar. Hoje, esse comportamento causaria estranheza. Mas, há mais de 60 anos, não.
Segundo o podcast Ciência Suja, que conta histórias de fraudes contra a ciência e seus prejuízos para a sociedade, “o cigarro é o pai do negacionismo moderno”. No final dos anos 1990, uma decisão judicial nos EUA expôs documentos internos da indústria do cigarro. Mostravam que, desde a década de 1950, já sabia que seu produto aumentava o risco de doenças cardiovasculares, de enfisema pulmonar e de vários tipos de câncer. Porém negava essas informações para o público.
A indústria criou e usou diferentes táticas para gerar dúvidas sobre evidências científicas cada vez mais claras. Desviava o foco, intimidava pesquisadores, manipulava a imprensa e fazia lobby junto aos governos. Dessa forma, ela conseguiu neutralizar evidências científicas que apontavam um elo claro entre o cigarro e diferentes doenças e, assim, escapar, por décadas, de processos e de ações judiciais.
Ainda menino, Cecílio ajudava na lida no campo — carpir o mato, cortar a cana e dirigir o trator. Descalço, ia a pé à única escola rural da região pela estrada de terra poeirenta. Lá chegando, lavava os pés e calçava chinelos para entrar. Estudou apenas dos 8 aos 12 anos e parou porque o bairro não dispunha de ginásio — nome que se dava ao Ensino Fundamental II.
Após o desastre que se abateu sobre a família, desiludidos, Cecílio e os outros parentes resolveram mudar completamente de negócio. Venderam a fazenda em Goiás e montaram o supermercado LSB, até hoje em atividade e constante expansão e aprimoramento. Contam, hoje, com 65 colaboradores diretos.
A história do Cecílio com o tabagismo começou a ser alterada só mais recentemente, quando assistiu a algumas palestras no Centro Comunitário em Saltinho e quando a neta o incentivou a fazer o tratamento. Fumava 1 maço de cigarros por dia quando me procurou, junto da esposa Maria Alice, no consultório, e fez o tratamento convencional com medicamentos e terapia de reposição nicotínica— os famosos adesivos.
Ela contou que o marido mudou muito após parar de fumar. Viu-o mais calmo, mais tranquilo e mais compreensivo. Aos 68 anos, Cecílio tem boa saúde. Toma remédios para a pressão e o colesterol. Não desenvolveu até hoje nenhuma doença grave relacionada ao tabagismo.
Um estudo publicado no periódico científico “American Journal of Preventive Medicine” revelou que parar de fumar, independente da idade, pode trazer enorme benefício para indivíduos com mais de 70 anos. De acordo com a pesquisa, que analisou dados de cerca de 160mil pessoas, a chance de morte de um fumante de 70 anos ou mais é 3 vezes maior do que a de uma pessoa da mesma idade que nunca fumou e também superior à probabilidade de um ex-fumante.
Com o abandono do tabagismo, Cecílio ganhou bônus extras para, nos finais de tarde, jogar boche com os amigos no Bar da Rose; nas férias, viajar para as Serras Gaúchas ou pescar no Mato Grosso; ou, somente sair, a qualquer hora, para passear de caminhão com as duas netas pequenas.
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