ARTIGO

Maquiavel e seu modelo de Príncipe

Por Armando Alexandre dos Santos | 19/06/2023 | Tempo de leitura: 4 min

Nicolau Maquiavel, político florentino nascido em 1469 e falecido em 1527, viveu numa época conturbada, em que os Médici consolidavam sua posição hegemônica na cidade-estado de Florença, onde, desde a Idade Média as famílias aristocráticas estavam alijadas do poder, que era reservado às famílias plebeias, burguesas. Os Médici, mesmo quando aparentados com reis e imperadores, em Florença sempre se afirmaram plebeus. Seu brasão de armas mostrava bolas, conhecidas como "palle". Segundo os maldosos, era uma alusão às ventosas que, inicialmente médicos, os Médici aplicavam aos seus doentes.

Os séculos XIV e XV asseguraram aos Médici a consolidação do seu poder. Mecenas, riquíssimos, impiedosos, calculistas, cruéis, mudaram a fisionomia de Florença e da Itália. A famosa Revolta dos Pazzi, em 1478, foi afogada em sangue por Lourenço de Médici, o Magnífico. Os Pazzi, os Salviati e outras famílias rivais dos Médici foram cruelmente perseguidas. O arcebispo da cidade de Pisa, um Salviati, foi enforcado na torre da catedral de Florença. Um sobrinho dele, conseguindo escapar à perseguição, fugiu para Portugal e se estabeleceu na Ilha da Madeira, deixando enorme descendência que adotou o nome Florença.

O que caracterizou a ideologia (é de propósito que uso essa palavra, um tanto deslocada no seu contexto habitual) maquiavélica é a total ausência de escrúpulos. Enquanto no passado (desde Aristóteles, passando por São Tomás de Aquino e pelos numerosos "Espelhos de Príncipes" estudados por Jacques Le Goff) se entendia que a finalidade do governo é assegurar o bem comum, e que o Príncipe deve, acima de tudo, ser virtuoso para ser bom príncipe, Maquiavel modificou radicalmente essa situação.

Para o florentino, o que importam não são os meios, mas os resultados obtidos. Pragmática e cinicamente, o fim do governante é perpetuar-se no poder, e para tal todos os meios são válidos. Maquiavel introduziu, no idealização do poder, um elemento de amoralidade (para não falar em imoralidade) extremamente perigoso. O resto viria como consequência. Todas as formas de violência, de corrupção, todas as "razões de Estado" de que falava Lenine, tudo, absolutamente tudo, começou a ser permitido, no plano teórico, a partir de Maquiavel.

No Medievo, o ideal visado para o governo dos povos era o fixado nos modelos pedagógicos dos citados Espelhos de Príncipes (em latim, Specula Principum), ou seja, o bem comum, não apenas nesta terra, mas em ordem à felicidade eterna. Esses Espelhos constituíram um gênero literário e pedagógico muito frequente ao longo de toda a Idade Média, desde o século VI, com o mais antigo de que se tem notícia, até à passagem do século XV para o século XVI, quando deixaram de ser produzidos porque entrou em voga outro modelo de Príncipe, o modelo renascentista e neopaganizado de Maquiavel.

No Renascimento, deixando de ser Deus o referencial de tudo, também a Moral e a Ética perderam seu lugar privilegiado, passando a prevalecer a amoralidade, ou seja, o indiferentismo em relação às noções de bem e mal. O critério de julgamento dos atos deixou de ser sua moralidade e passou a ser sua utilidade. O que é útil e vantajoso pode ser feito, ainda que o condenem a moral e a consciência humana bem formada. Foi assim que se passou do modelo medieval de Príncipe cristão devotado ao bem comum e se chegou ao modelo do Príncipe de Maquiavel, cuja meta não mais era assegurar o bem comum da sociedade que governa, mas tão-só garantir sua permanência no poder, tendo em vista única e exclusivamente o seu próprio bem individual.

Data de 1532 a publicação do livro O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, que propôs um modelo de príncipe utilitário, interesseiro, egoísta e inescrupuloso, para o qual os fins justificam os meios. De fato, Maquiavel não foi propriamente inovador ao emancipar os governantes da tutela da Moral, mas apenas reapresentou, com novas roupagens, o modelo de governante da Antiguidade pagã, que não se sentia obrigado a obedecer a nenhuma lei moral e governava apenas pela lei do mais forte.

A esse respeito, é bem elucidativa uma passagem de Maquiavel, em que ele discorre sobre como o príncipe governante não deve ter escrúpulos ou preocupações de ordem moral, mas deve estar disposto a fazer todo o necessário manter-se no poder, já que os fins justificam os meios:

“Resta examinar agora como deve um príncipe comportar-se com os seus súditos e seus amigos. (...) Como é meu intento escrever coisa útil para os que se interessarem, pareceu-me mais conveniente procurar a verdade pelo efeito das coisas, do que pelo que delas se possa imaginar. E muita gente imaginou repúblicas e principados que nunca se viram nem jamais foram reconhecidos como verdadeiros. Vai tanta diferença entre o como se vive e o modo por que se deveria viver, que quem se preocupar com o que se deveria fazer em vez do que se faz, aprende antes a ruína própria, do que o modo de se preservar, e um homem que quiser fazer profissão de bondade, é natural que se arruíne entre tantos que são maus. Assim, é necessário a um príncipe, para se manter, que aprenda a poder ser mau e que se valha ou deixe de valer-se disso, segundo a necessidade.” (MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Rio de Janeiro: Ediouro, 1980, p. 90)

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