ARTIGO

Que diria o sábio Samuel?

Por Armando Alexandre dos Santos | 22/05/2023 | Tempo de leitura: 4 min

Em 1971, o Papa Paulo VI se referiu ao ambiente cultural já então prevalente no mundo inteiro, designando-o como “a civilização da imagem”. Nas décadas seguintes, o fenômeno apontado pelo Pontífice se intensificou sobremaneira: cada vez mais as imagens, os ícones, os símbolos gráficos ocupam espaços da nossa atenção, os quais antes ocupados pelas palavras, pelas frases, pelos pensamentos, pelas abstrações puras. O predomínio cada vez mais dominador da televisão sobre o rádio e, ainda mais, sobre o jornal, é bem indicativo desse fenômeno, que se fez notar em todos, absolutamente todos, os campos da atividade humana.

A “digitalização” da vida, com o predomínio ainda mais dominador das tecnologias digitais, o uso e abuso de smartphones, e agora as tecnologias da chamada “inteligência artificial” agravam um problema que já é antigo: a espécie Homo sapiens está cada vez mais perdendo a sua especificidade, aquilo que a distingue dos animais irracionais.

O hábito da leitura, e sobretudo da leitura reflexiva, está desaparecendo. Para que ler jornais, se o noticiário já nos é entregue pronto, embalado e até “mastigadinho” pelos noticiários televisivos? Para que ler livros, que são caros, dão trabalho, tomam tempo e, no final das contas, “rendem” a quem os lê três ou quatro informações ou pensamentos que podem ser obtidos, sem custo nem trabalho, mediante a assimilação passiva de algumas poucas frases que a mídia televisiva ou as redes sociais nos oferecem diariamente?

Por que ler livros científicos, se é possível assistir na tela, aprazivelmente, a programações de canais especializados na divulgação científica, ou ter acesso a rapidíssimos vídeos em que “especialistas” discorrem sobre absolutamente todos os temas possíveis e imagináveis? Por que ler tratados filosóficos difíceis de entender e digerir, quando se tem ao alcance imediato inúmeros programas do tipo “você decide”, nos quais não há necessidade de raciocínios ou argumentos demonstrativos, bastando, como fórmula mágica invariavelmente aplicável, o célebre “achismo” para fundamentar qualquer afirmação?

Nosso saudoso amigo Samuel Pfromm Netto, professor de Psicologia Educacional da USP e membro do antigo Conselho Editorial do JP, costumava explicar em pormenores o funcionamento da psique humana diante de informações novas. O espírito humano, ensinavam os escolásticos medievais (e, antes deles, os gregos antigos) procede normalmente em três etapas: ver, julgar, agir.

Inicialmente, vê-se. Ver, aí, tem significado amplo, incluindo não só aquilo de que se toma conhecimento pela visão ocular, mas tudo o que chega ao nosso conhecimento pelos sentidos. Em segundo lugar, julga-se. Ou seja, diante de algum estímulo externo, procede-se a um julgamento: isso é bom ou mau? é certo ou errado? é belo ou feio? está de acordo com o que eu já sabia ou é algo novo? Se for novo, como incorporar ao conjunto dos conhecimentos anteriores? Essa incorporação é harmônica ou é conflituosa? Se for conflituosa, julga-se, em face do dado novo, o que já estava assentado. Depois desse esforço crítico e analítico, vem a terceira etapa: age-se. Agir, no caso, não é só fazer alguma coisa, mas é exercer formalmente a vontade, mesmo que esse exercício não se traduza numa ação externa.

Esse é o procedimento normal do nosso espírito diante de todos os dados novos que apreendemos. É assim que exercemos nossa racionalidade, nossa liberdade individual. Aliás, é indissociável dos direitos humanos mais elementares que cada indivíduo possa dispor livremente de si mesmo, ao longo de todo esse processo racional-volitivo. E é, também, indissociável da noção de Democracia, tal como geralmente se entende esse nebuloso conceito: só se admite a soberania popular se se partir do pressuposto de que cada elemento do povo, individualmente, exerce seu senso crítico e o traduz externamente pelo exercício constante da cidadania e pelo exercício periódico do voto.

Como explicava Samuel, a televisão, pela rapidez com que comunica aos assistentes suas mensagens, visuais e auditivas, não permite que o espírito humano desenrole com normalidade o seu processo crítico e volitivo, devido à sucessão vertiginosa de estímulos dos mais desencontrados que produzem impressões contraditórias que não têm tempo de serem criticadas e julgadas racionalmente. Isso dizia Samuel da televisão... Que diria o sábio piracicabano, que nos deixou há 11 anos, dos robôs humanos que, de olhos vidrados na telinha mágica, apertam freneticamente os teclados de seus celulares?

Isso produz um apassivamento acentuado do público, que perde o hábito de refletir e criticar. Depois de perdido esse hábito, o exercício da crítica torna-se penoso, torna-se algo que incomoda e se prefere evitar. É mais cômodo repetir, impensadamente, ideias prontas, que nos chegam à maneira de slogans publicitários...

Esse o grande drama da educação moderna, esse o grande drama da Democracia moderna. Repousa esta última, mentirosamente, sobre o mito de um povo teoricamente soberano, mas que na realidade não pensa e é habilmente conduzido por impulsos cientificamente projetados a partir de imensas máquinas de propaganda que dominam a técnica de manipular os famosos logaritmos.

É claro que há exceções. Sempre há as minorias pensantes... mas que podem fazer elas diante de maiorias acarneiradas e disciplinadas?

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