ARTIGO

Morrer acontece...

Por David Chagas |
| Tempo de leitura: 4 min

“Morrer acontece com o que é breve e passa.”

Rita Lee deveria, ao menos, ter dito como, ausente, seria possível contornar o peso da despedida. Sabia ter disseminado entre todos Mania de Você.

Para uma geração toda que tinha prazer em caminhar a seu lado, aplaudindo sua coragem, seu destemor, acostumar-se agora ao vazio, ao silêncio imposto pela ausência, tira um pouco da felicidade que disseminou entre todos. Não há falta graças a suas canções. Ausente, perde-se um pouco da graça de seus passos, de seus traços, de seu olhar.

Sua irreverência nos era de fundamental importância. Desafiava a ordem ideológica, econômica, política e legal, a elite social com graça, de modo espontâneo, causando frisson a cada aparição sua.

Por sorte, suas canções, no correr do tempo, seguem trazendo igual frescor, o mesmo aroma, sempre. Seus vídeos revelam, de modo atemporal, imagem jovial, voz delicada, passos graciosos de que só ela mesma é capaz.

Este charme desmedido acaba por obrigar-nos a ver, a rever na vã esperança de que volte para revolucionar tudo outra vez e cutucar o status quo com alfinete seu, só seu. Teria sido este o momento para marcar fim de vida como a sua, capaz de agitar sem confusão?

Por sorte, ampliou – e muito – o sentido de telepatia nas relações de amor, aliviando as sensações de agora. Mais que nunca vamos estar a seu lado no chão, no mar, na lua, na melodia.

No frenesi provocado pelas canções, a comunicação direta com Rita prosseguirá sem que haja limites de percepção ordinária. Rita, soube, como poucos, impor esta ordem que nos fazia bailar como se baila na tribo.

Se bem penso, alcançou mais porque desde sempre percorreu igual espaço em outra a dimensão, anos à nossa frente.

Sorte nossa, nascemos em datas não tão próximas, mas na mesma geração. A diferença foi que Rita caminhou ligeiro em ideias e atitudes, com talento, graça e gênio criador.

Antonio, seu filho, dá a chave de sua grandeza interior e ajuda a entender  o reconhecimento de quantos, no mundo, a conheceram: movida pela verdade, verdade em lidar com tudo. Não enganava, não se deixava enganar. Não usava o tom de maquiagem que permite à sociedade esconder sua hipocrisia. Foi. Era. Santa Rita de Sampa.

Por isso me vali do verso de Drummond para iniciar o texto: “morrer acontece com o que é breve e passa.” Rita! A Santa de Sampa, Mulher, Mãe, genial compositora, cantora, compositora de hits famosos, na sua graça, é eternidade.

Quando a transformaram em Santa por certo atentaram aos milagres feitos no semear da alegria, na ingênua necessidade de fazer a gente feliz.

Soube ser, soube ensinar a ser. Permitiu entender a vida em outra dimensão, enxergar São Paulo de outro modo, já que foi, da cidade sua mais completa tradução.

Sempre e para sempre, em Paris ou nos brasis, mesmo distantes, sempre constantes, de Rita Lee, coisa rara, por amor, nada nos separa.

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Não foi por acaso que dei por título a este artigo verso do poeta brasileiro moderno que mais admiro. Fiz disso epitáfio diante da tristeza sentida com o adeus à Rita Lee, por quem, sei, Carlos Drummond demonstrava apreço e admiração. O poeta tinha, comigo, esta parecença. A sisudez aparente disfarçava gosto bom por quem joga de modo simples e alegre o jogo da vida. Aplaudia os Trapalhões. Não perdia encontrá-los em fim de tarde domingueira.  Admirava, como muitos de nós, o talento de Milton Nascimento, e se orgulhava por sabê-lo mineiro como ele.

Daí que me senti bem ao usar-lhe o verso e o poema para falar dela e, com ela, das mães, que também soube ser.

A Rita, o apreço de estar com ela neste tempo de caminhada, aprendendo com sua irreverência, com seu bom humor, com sua canção bem escrita. Às mães, ah, as mães! Os poetas, como sabem dizer os poetas. E como dizem bem: Mãe não tem limite! Tempo sem hora! Luz que não apaga!

Quanta verdade em cada verso e, em cada verso, a palavra certa, medida, justa, perfeita.  Miguel Torga, em seu Diário:

Mãe: Abre os olhos ao menos, diz que sim!

Diz que me vês ainda, que me queres.

Que és a eterna mulher entre as mulheres.

Que nem a morte te afastou de mim!

Nestes versos recolhidos espelho minha alma e trago, de Quintana, os segredos contidos na palavra. “Mãe, são três letras apenas, / As desse nome bendito: / Três letrinhas, nada mais... / E nelas cabe o infinito. / E palavra tão pequena / - confessam mesmo os ateus - / És do tamanho do céu / E apenas menor que Deus!”

Para Sempre, de Carlos Drummond, responde, ao que me parece, a todas as minhas inquietudes:

Por que Deus permite

que as mães vão-se embora?

Mãe não tem limite,

é tempo sem hora,

luz que não apaga

quando sopra o vento

e chuva desaba,

veludo escondido

na pele enrugada,

água pura, ar puro,

puro pensamento.

Morrer acontece

com o que é breve e passa

sem deixar vestígio.

Mãe, na sua graça,

é eternidade.

Por que Deus se lembra

- mistério profundo –

de tirá-la um dia?

Fosse eu Rei do Mundo,

baixava uma lei:

Mãe não morre nunca,

mãe ficará sempre

junto de seu filho

e ele, velho embora,

será pequenino

feito grão de milho.

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