ARTIGO

Formato para um que me há de ser

Por David Chagas | 08/05/2023 | Tempo de leitura: 4 min

Gosto sempre quando a memorização me leva a lembranças capazes de revelar tempo em que tudo luzia com beleza, leveza e pureza essenciais. Me entendia vivo, amava, mas pouco ou nada percebia da esperança que os alimentava em torno de mim. Por que tantos se põem neste caminhar solitário?

Te ocorre ou não? Pensar exige revisita interior para descobrir a partir de si mesmo a essência da vida. É quando se descobre ter ou não havido erro no esboço feito no começo.

Nesta hora em que escrevo, para exemplo teu nesta nossa conversa, afugentado no escritório onde passo grande parte do tempo, olho por vezes para as paredes e encontro nelas pedaços de vida que insistem em estar comigo.

Primeiro, pintura premiada que chegou às minhas mãos, há décadas, em noite de Natal. Era um tempo em que havia expectativa de presentes como se o Natal nos pertencesse.

Na pintura, esguia, elegante, uma égua, Faísca, a que me fez companhia ao longo de alguns anos, quando a infância permitia acreditar que tudo seria igual sempre e alegria e felicidade seriam oxigênio constante.

Por vezes, com tanto a fazer, perco-me da implacável contagem de horas e, absorto, me envolvo em meus próprios pensamentos. A imagem provoca? Não. A égua. E me acomodo em seu dorso e cavalgo ainda nela por horas a fio. É possível, senão ouvir, sentir as marchas, o movimento do corpo, o jeito veloz de conduzir-me para onde quiser em seu trotar seguro.

Mais adiante, em quatro ou cinco riscos geniais, Fernando Pessoa, numa gravura de Júlio Pomar, artista plástico português, que se dedicou a retratar o poeta em traços predominante retos e verticalizados, sem perder jamais a sensação de movimento necessária para dar-lhe vida.

Aí me detenho. O tempo? Pouco importa: a alma não é pequena. Sinto, outra vez, caminhar por Lisboa próximo ao café frequentado pelo poeta.

Obrigo-me a penetrar, neste espaço, repenso estes dois momentos da minha vida que me habitam e insistem em fazer-me pensar que ainda procuro, agora não de forma tão insistente, o formato final de um que ainda serei.

Pomar e Pessoa, dois portugueses de quem me ocupo agora. Um, pela obra poética e outro, pelo artista que foi.

A experiência é transcendental. Quem me traz Pessoa obrigando-me a rever seus poemas é justamente a gravura de Pomar, multifacetado artista cuja morte feriu-me a alma, embora reconhecesse, à época, a longa soma de seus dias feita por mais de nove décadas registradas em trabalhos primorosos que fizeram Portugal ganhar o mundo.

Em seu trabalho, influência da melhor literatura, marcas de resistência política, sinais de erotismo e traços de viagens feitas.

É, no entanto, nos múltiplos desenhos de Pessoa que permaneço. Obrigo-me a juntar-me com seus heterônimos e a pensar nas diferentes épocas que compuseram sua vida e o transformaram num dos mais extraordinários poetas de todos os tempos. Se me detenho num poema de Álvaro de Campos, um de seus muitos eus, Aniversário, vejo que, como eu, revisita o passado para rever o dia de seus anos.

“Era feliz. Ninguém estava morto. A alegria de todos estava certa como uma religião qualquer.”

Leitor, não te metes para dentro de ti mesmo na busca desmedida de entender e entender-te? Não sentes antecipar-se, nos versos do poeta, a tua própria história?

“No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, / Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma, /

De ser inteligente para entre a família, /

E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.”

Este obrigar-me a mergulhar em mim me leva a observar o pequeno que fui, desde o primeiro instante. Terá sido difícil achar-me em espaço diferente daquele onde, por longo período, foi possível viver? Da explosão de vida no primeiro choro?

Não é possível alcançar resposta para tanto mistério. Nem mesmo o encantamento do olhar de quem viu o pequeno e, vendo, o envolveu, mirando sem cessar, sem entender o que poderia estar sentindo. Se sentiu, não se sabe. O que se sabe o nutrir de esperanças em torno de quem nasce como se a vida não lhe pertencesse e fosse de quem mira, olha e vê.

Os suspiros e interjeições provocadas pela vida que se apresenta em graça que pelo desejo de saber quais e quantas semelhanças se mostrarão no ser que chega e quando se terá alguma certeza de como será, do que virá. Bom, do começo foram as primeiras horas. Descanso e paz.

Dormir. Como se dorme! Neste sono, quem sabe, o semear de esperanças ou combustível ainda maior para o mistério da vida.

“Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...”

Não me entendas mal, leitor, se assim procedo, trocando minha fala com a de FP/Álvaro de Campos. Este comportamento me ajuda a encontrar o que desejo para mim, escrevinhador, e para ti que me lê. Juntos, quem sabe, entenderemos a razão de estar, de ser, de prosseguir.

“Para, meu coração!

Não penses! Deixa o pensar na cabeça!

Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!

(...)

Somam-se-me dias.

Serei velho quando o for.

Mais nada.

Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!....”

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